Fernando Haddad e as virtudes do Estadista

Sem querer entrar aqui em uma discussão filosófica sobre a obra de Maquiavel, que eu nem saberia fazer, é sabido hoje em dia que o bom quadro político, aquele que chamamos de um Estadista, tem que ter uma qualidade fundamental, a virtude, não só como a capacidade e o comprometimento de praticar o bem (eticamente, moralmente, socialmente), mas também a habilidade pessoal de agir, nas suas decisões, de acordo com as complexas circunstâncias e condicionantes da governança, sabendo sempre colocar à frente os interesses comuns, os princípios éticos, republicanos e o compromisso social.

Eu não conhecia proximamente Fernando Haddad até o dia em que tive a oportunidade de trabalhar com ele, quando me convidou a assumir, por um curto tempo, uma secretaria em seu governo. Nos primeiros anos de seu mandato, havia sido convidado a tomar parte de seu “conselhão”, um fórum consultivo e participativo que reunia desde lideranças de todos os movimentos sociais até reitores de universidade ou celebridades. Fiquei, à época, bastante impressionado com sua disposição em ouvir posições divergentes à sua, sobre os assuntos colocados em pauta, e sua atitude permanente de diálogo, com impressionante capacidade argumentativa. Um bom exemplo disso foi quando, em plena ebulição dos movimentos de maio e junho de 2013, chamou as lideranças do Passe Livre para participarem do dito conselho, dando-lhes a palavra e observando e aceitando amplo e quase unânime apoio do conselho às colocações dos jovens líderes.

Antes disso, havia cruzado Fernando Haddad indiretamente, em 1988, quando ele liderava os estudantes da São Francisco junto à Plenária Pró-Participação Popular na Constituinte, que meu pai organizava, e depois, em 1997, quando fazia meu Mestrado na Ciência Política da USP, e ele, já Doutor, entrou lá como professor, um indício de seu brilhantismo acadêmico.

Mas foi efetivamente no exercício da gestão pública que tive a oportunidade de observar de perto a sua excepcional virtude para a governança. Poderia aqui ficar tecendo elogios sobre suas inúmeras qualidades, ou descrevendo um sem-número de ações excepcionais que ele realizou em suas diferentes funções, mas que poderiam parecer apenas como um discurso oportunista de convencimento de campanha. Além do mais, é só ler qualquer material jornalístico por aí que aparecerão coisas como o Prouni, o FIES, e tantas realizações feitas sob sua responsabilidade. Quero convencer, sim, mas prefiro fazê-lo com alguns poucos exemplos concretos, alguns pessoais, que não exaurem uma lista realizações, mas que, por seu significado, simbolizam para mim o fazer político de Fernando Haddad, e sua qualidade de Estadista.

O primeiro é uma qualidade que se vê cada vez menos no universo dos políticos no Brasil (e, acredito, no mundo). O de colocar as questões da comunidade governada (o município, o Estado, o país) acima dos interesses da carreira política pessoal. Testemunhei várias situações em que Haddad, como prefeito, discutia medidas tomadas para o bem da cidade, mas que eram combatidas politicamente pelos adversários, de tal forma que a manutenção da medida poderia gerar uma perda de popularidade e, obviamente de votos. Há inúmeros exemplos, mas o mais didático talvez seja o da prioridade ao transporte público (que atende 70% da população) em detrimento do carro (que é usado por 30% da população), que inclui a limitação da velocidade na cidade.

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Me lembro bem de uma capa da Revista Época, mostrando um corredor de ônibus vazio em uma 23 de maio totalmente congestionada. Dizia a capar “por que a ideia [dos corredores] deu errado”, em um típico exemplo de manipulação ideológica da imprensa. Pois a foto mostrava justamente o contrário, que tinha sim dado muito certo. O corredor expresso era tão eficiente que nem ônibus havia lá. Vupt, já tinha passado, e os 70% que usavam ônibus já provavelmente estavam em suas casas, enquanto os motoristas amargavam horas no trânsito parado. “Não dar certo”, na linguagem da elite patrimonialista que a revista representa, é “não dar certo para quem tem carro”, pressupõe-se. Ora, o interesse da política era justamente o de agilizar o transporte público, para todos.

Ao mesmo tempo, Haddad seguiu as orientações técnicas adotadas por todas as grandes cidades do mundo, de limitar a velocidade dos automóveis, conseguindo com isso, um efeito duplo: diminuir drasticamente os acidentes - em especial os atropelamentos - e, de quebra, aumentar (sim, aumentar) o fluxo dos automóveis nas vias arteriais, diminuindo os congestionamentos, por causa da velocidade controlada, porém mais constante e sem interrupções (geradas pelos milhares de incidentes decorrentes de velocidades mais altas).

Houve um sem número de estudos e publicações mostrando a qualidade desse avanço civilizatório. Ele certamente ajudou a cidade a receber um prêmio internacional da UN-Habitat, da ONU, pelo Plano Diretor coordenado por Haddad. Mas não, a disputa político-eleitoral não iria deixar barato. Foram inúmeras as discussões que acompanhei em que se levantava a preocupação de que essas medidas, embora positivas, pudessem gerar demasiada impopularidade para o prefeito. E, invariavelmente, ouvi Haddad ponderar: “não interessa, se for por isso, prefiro perder as eleições do que deixar de fazer o que é bom para a cidade”.

Impressionante como à essa virtude se contrapõe a atitude eleitoreira e manipuladora dos que fazem da política apenas uma escada para seu poder pessoal. João Dória estruturou seu discurso de campanha justamente em torno do conceito de “acelerar” e cunhou o termo “Raddard”, alimentando o perverso discurso da “indústria da multa” (quando para não ter multa é necessário apenas respeitar as leis de trânsito), cuja arrecadação ele iria fazer subir em mais de 15% nos primeiros meses de seu governo. Um dia, na campanha eleitoral para sua frustrada reeleição, acompanhava Fernando Haddad em uma região periférica, distante e exilada da cidade por anos e mais anos de um planejamento segregador, e onde, enfim, havia chegado um corredor expresso de ônibus, acoplado a uma belíssima e vermelha ciclovia. Na caminhada, de dentro de um novíssimo ônibus que passava no corredor, um rapaz que provavelmente não tinha carro, abriu a janela, pôs a cabeça para fora, e gritou “Aí, vai pra casa, Raddard!!”. Estava vaticinado o fato de que o preço eleitoral a pagar por fazer políticas estruturais poderia ser alto. Com seu ar tranquilão de sempre, Haddad me olhou, sorriu, e disse calmamente: “é duro né, mas prefiro ver o cara falando isso de dentro desse ônibus do que saber que ele não tem como se deslocar adequadamente até seu trabalho”. Fiquei impressionado.

O segundo exemplo é o da lealdade pessoal, não aquela lealdade partidaria oportunista para sustentar acordos impostos pela lógica da “governabilidade”, mas uma postura ética, de respeito ao trabalho e compromisso pessoal de seus auxiliares e à palavra dada. Quando assumi a Secretaria de Habitação, era para o lugar que havia sido entregue, em acordo pré-eleitoral, ao PP. Haddad pagou por muito tempo o preço da famosa foto do aperto de mão com Maluf e fez, uma vez eleito, severas exigências para que o indicado para a Habitação - a pasta pedida no acordo - fosse alguém sequer filiado àquele partido, sem mandato eleitoral, de perfil técnico e de ficha limpa. Meu antecessor, independentemente de críticas ou elogios aos aspectos técnicos de sua gestão, respondia a essas exigências e fez ali um trabalho honesto, que Haddad respeitava profundamente. Quando me chamou, estava sob saraivada de “fogo amigo”, vinda dos movimentos sociais, que queriam muito a substituição do secretário. Haddad me disse: “sei que o pessoal quer muito que eu o substitua, mas precisava de um motivo para romper o acordo, pois sou fiel à minha palavra. Além disso, o secretário trabalhou duramente e honestamente até aqui, colocando-se à serviço da gestão, e não teria porque tirá-lo de supetão”. Foi o anúncio feito pelo Datena de que sairia candidato à Prefeitura, pelo PP, contra Haddad, que lhe deu justificativa que esperava. Com extrema elegância, fez a substituição, sem nunca desmerecer o trabalho feito pelo meu antecessor, porque não havia razão para isso. Até hoje, ouço críticas dos movimentos de que essa troca tardou demais. De dentro, compreendo as razões dessa demora, que me fazem respeitar ainda mais Fernando Haddad.

Essa lealdade pessoal, que ele também demonstra com grande dignidade com Lula (imaginem o quanto é corajoso, neste país tomado pelo golpe, dizer claramente e com firmeza em debate nacional que Lula, o “bandido dos bandidos” na versão da mídia e dos tucanos, está sim preso injustamente e que ele, como seu advogado, irá defendê-lo até o fim), é também uma lealdade política. Me lembro também de suas respostas, no auge da construção do discurso golpista de que o PT era o mal de todos os males, e que era um partido acabado, quando lhe perguntavam por que, como uma liderança nova na nossa política, ele não se desfazia desse “fardo” e se lançava em carreira solo, por outro partido, como o faria qualquer outro político. Haddad era límpido: “por lealdade a essa legião de petistas, o povo que acreditou e acredita na gente, e continua a acreditar, apesar de erros nossos e de intrigas deles, e que nunca abandonou o barco. Por lealdade ao Presidente Lula, com quem trabalhei e de quem tenho absoluta certeza de sua inocência”. Hoje, ao ser festejado por centenas de milhares de petistas, que reencontram o prazer da militância e da fé em um projeto para o país, fica claro o quanto essa lealdade estava certa.

O terceiro exemplo se deu quando Haddad perdeu a reeleição para João Dória. Ao contrário da prática comum no nosso universo político, sua orientação não foi a de fazer vista grossa à uma transição caótica, que visasse minar a gestão do novo prefeito desde seu primeiro dia no governo, como aliás havia sido feito (pelo menos na minha área), quando ele mesmo assumiu. Pelo contrário, o prefeito deu a orientação de deixar tudo o mais organizado possível. Dizia ele: “a cidade não pode pagar o preço das disputas políticas. Se elegeu o Dória, temos que respeitar e dar a ele as melhores condições de continuidade daquilo que acreditamos ser importante”. Meu sucessor, Fernando Chucre, é o primeiro que, com certeza, poderá confirmar isso. Deixamos tudo tinindo para que pudessem fazer um bom governo.

Os dois últimos exemplos, muito ilustrativos de quem é Fernando Haddad e sua virtude política, vêm já da atual campanha eleitoral. Um é a sua reação às críticas feitas por Ciro. O cearense, como sabemos, faz uma campanha de estratégias conjunturais, mudando o discurso e os alvos de seus ataques segundo os ventos da campanha e das enquetes eleitorais. Lá pelas tantas, ates de Haddad consolidar o salto substancial que Lula previra, e firmar-se como a grande força política contra o golpe e contra Bolsonaro nesta eleição, a conjuntura dizia que Ciro poderia ser o candidato a assumir esse papel. Ciro queria voar pilotando um avião que não era seu, trazendo para si a massa eleitoral petista que Haddad, como disse, nunca traiu. Passou a atacar fortemente o petista, que meses antes era indicado pelo próprio Ciro como um vice possível de uma candidatura “dream team”. Mas o que não poderia ser não foi, e essa massa rapidamente avalizou a candidatura de Haddad como o indicado por Lula, esvaziando as pretensões de Ciro. Haddad, porém, sabe que se trata de disputa conjuntural. Sabe que Ciro tem muitas qualidades, Sabe que se compuser com Ciro em um segundo turno, o Brasil só terá a ganhar. Ao reagir aos ataques, foi elegantemente fleugmático, recusando-se a responder no mesmo tom: “não vou bater em quem eu vou querer como aliado para governar”. Mais um indício de sua virtude política.

Por fim, o último exemplo é talvez o mais desnorteante. Em vários momentos no governo da cidade, em pleno golpe contra a Dilma, houve situações em que o fígado falava mais alto, em que a vontade era ver nosso prefeito partir para a briga pesada, contra injúrias das mais diversas. A única vez que o fez, foi de forma irônica, pregando uma peça ao insuportável Villa, a JovemPan, que o xingava todo santo dia. No geral, face às piores truculências, Haddad respondia pelo caminho da tolerância, analisando a situação e compreendendo, dentro do possível, o acontecido, em uma dimensão mais ampla, não direcionada ao agressor. Pois bem, Haddad deu estes dias um exemplo impressionante dessa capacidade. Enquanto quase desmaiamos quando vemos as declarações do inominável fascista, o #elenão, e as atitudes de dar náuseas de seus seguidores, como a de seu filho, que teve a coragem de postar em seu Instagram uma imagem de um homem com a inscrição “#ele não” no corpo sendo torturado, a cara ensaguentada em um saco plástico e com alusões homofóbicas, enquanto somos consumidos pela mais profunda angústia ao ver o crescimento de uma população racista, misógena e violenta, Haddad dá a seguinte resposta, em um jantar com artistas (segundo reporta a Folha de S.Paulo): “Não tem como se desenvolver do ponto de vista institucional sem passar por alguns partos. As nações que chegaram ao desenvolvimento, que a gente respeita, passaram por momentos tão dramáticos como o que estamos passando agora. Se a gente vencer essa etapa, nós vamos olhar para trás e, ao invés de acusar aqueles que querem votar no Bolsonaro e tudo mais, vamos compreender que é uma parte de um sentimento que se expressou dessa maneira, como uma febre alta, mas que foi importante em determinado momento para a gente pensar que tem coisa errada com esse organismo aqui, e vamos cuidar dele porque é muito importante para nós”.

Essa capacidade de ler o pior cenário pela ótica da construção social é uma virtude de um grande estadista. Haddad não leu isso em algum manual de instruções, mas com certeza bebeu muito da sua convivência com Lula, e tem essas atitudes, que nos pegam de surpresa, de forma quase natural. Vem de dentro, da sua maneira de ser. Enquanto estamos aqui nos roendo, é um alento poder depositar esperanças em pessoas como ele. O Brasil precisa..