Ocupação não é problema, é solução (ou deveria ser)

O desabamento do prédio da Paiçandu abriu a temporada de caça às bruxas....ou melhor, aos movimentos de moradia. Criminalizados, confundidos com bandidos, são vítimas de um fenômeno típico da sociedade de elite: a culpa é jogada nos pobres, desviando-se dos verdadeiros responsáveis. 

Não custa repetir: o que é irregular não são os moradores que ocupam prédios vazios por não ter onde morar. São os prédios, que pela lei do Estatuto da Cidade, não deveriam estar vazios.

Não cumprem sua função social, que é ter um uso, porque custam caro à sociedade. No Direito, esse é um conceito comum: há países em que obras de arte não podem ficar guardadas sem serem expostas. Não cumprem sua função social, de serem vistas por todos, para o bem da cultura geral. No caso dos prédios, eles recebem toda a infraestrutura urbana - paga pelo Estado, ou seja pelos impostos de todos - para que possam funcionar. Mas, mesmo assim, são deixados vazios. Desperdiçam o dinheiro público que neles é investido.

Em vez de enfrentar esse problema, as autoridades representantes da "sociedade de elite" atacam os pobres. Esta semana, aproveitando-se da tragédia, começou uma tentativa, em nome do risco de incêndio, de perseguir os que ocupam prédios. A PM do Estado de SP foi numa ocupação com crianças doentes, mulheres grávidas, idosos, e cortou a luz (veja aqui). Assim como faziam os nazistas no gueto de Varsóvia.

A questão deveria ser vista de forma diametralmente oposta. Prédios vazios são perigosos, se degradam, atraem ratos, oferecem risco à população. São um problema. Na enorme maioria das vezes, os movimentos que os ocupam, para denunciar seu mau uso, fazem um favor à cidade. Colocam extintores, fazem limpeza, tentam recuperar os elevadores, e acabam mantendo o prédio muito melhor do que quando ele está ao abandono.

O certo, portanto, seria tentar identificar os proprietários de imóveis vazios (ocupados ou não por movimentos) e, de alguma maneira, potencializar formas de lhes dar novo uso em definitivo, resolvendo parte da falta de moradia e devolvendo ao prédio sua função social. Quando estão ocupados, essa possibilidade só fica mais fácil: os movimentos já tiveram o trabalho de identificar os prédios em condições de ocupação e passíveis de transformação. Esta deveria ser, a princípio, uma modalidade importante da ação pública na área central. No governo Marta, foram os movimentos e suas assessorias técnicas que fizeram para a Prefeitura o primeiro levantamento de prédios aptos a serem reabilitados, em um programa à época chamado de PRIH (Programa de Reabilitação Integrada do Habitat), um trabalho coordenado pela competente Helena Menna Barreto.Daquela gestão saíram uma dezena de prédios reformados, que estão aí até hoje, muito bem utilizados, dando vida ao centro.

Deve-se entender que quando um prédio particular é ocupado, a Prefeitura não tem muito o que fazer quanto a isso. Os proprietários, via de regra, convencidos pelos seus advogados de que essa é a melhor solução, pedem a reintegração da posse do imóvel (os advogados, claro, ganham com isso).  Os juízes, que pouco sabem sobre função social da propriedade, dão razão as proprietários, mesmo que estes estejam na ilegalidade, e mandam desocupar o prédio, em geral com ação violenta da polícia. Resultado? O edifício volta a ficar vazio, volta a ser um problema para a cidade, até a próxima ocupação. E o processo não tem fim.

Há duas formas da Prefeitura atuar em relação a essa questão. A primeira, é tentar sempre que possível, mediar o conflito entre proprietários e ocupantes, tentando ajudar a chegar à uma solução. Quando era secretário de habitação, criei no gabinete um grupo de negociação de conflitos imobiliários e fundiários, coordenado por uma fantástica e experiente servidora municipal. Conseguimos, em alguns casos, fazer o proprietário perceber que não era vantagem nenhuma ele pedir reintegração de posse - como lhe indicava seu advogado - e ficar com o prédio vazio de novo, abrigando ratos. Algumas vezes foi possível propor uma negociação, pela qual os movimentos ocupantes fecharam a compra do edifício, para reformá-lo e transformar em habitação. Muitas vezes, porém, nem sequer conseguíamos chegar aos proprietários, tal a barreira criada pelo lobby dos advogados, interessados na máquina das desapropriações.

A outra forma é a Prefeitura desapropriar o prédio para então fazer sua reforma e transformá-lo em habitação social. Isso é um processo complexo, que pode ter várias modalidades, todas elas importantes para compor uma política ampla de ação. Nem sempre é possível, pois o valor do prédio, somado à reforma, deve ficar dentro de um patamar aceitável, que não coloque o gestor em irregularidade por ter gasto além do que poderia. Por isso, muitas vezes prédios tombados, como era o do Paiçandu, tornam-se problema, pois os custos de uma reforma, com o engessamento do tombamento, inviabilizam sua desapropriação. Na gestão Haddad conseguiu-se negociar com no INSS para receber cerca de dez prédios que lhe pertenciam, em troca de uma dívida da instituição com a cidade, visando reabilitá-los e constituir um parque público para locação social. Uma ideia genial do prefeito, que permitiu à cidade estruturar um parque próprio de imóveis que poderá, se o processo for continuado, ser a base de uma política de locação social no centro.

Mas há um processo mais sistêmico e integrado a ser feito, e que poderia, em médio prazo, ir resolvendo a questão dos prédios abandonados. E essa proposta está feita, no Plano Municipal de Habitação que enviamos à Câmara em 2016, e que até agora ficou por lá cozinhando em fogo brando.

Trata-se, primeiro, de identificar os prédios vazios ou subutilizados, e notificar seus donos com um instrumento de lei que se chama PEUC - Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios, seguido da aplicação do IPTU Progressivo no tempo e sua eventual desapropriação.

São termos que parecem complicados, mas que são simples: o PEUC obriga o proprietário notificado a fazer algo com seu imóvel, em um prazo de dois anos. Se não fizer nada, a Prefeitura irá aumentar seu IPTU durante 5 anos, até chegar a um aumento de 15% e, se ainda assim nada for feito, ela terá depois disso o direito de desapropriá-lo para fins de moradia, pagando com títulos da dívida pública.

É fácil perceber que se trata de um processo muito longo, sete anos ao todo, e por isso talvez muito pouco efetivo. Mas não é: uma vez notificados, muitos proprietários se sentem pressionados e vendem seus imóveis ou começam a dar-lhes algum uso. Se isso ocorrer com 10% dos notificados já será uma grande revolução.

Mas, para isso, é preciso mapear os prédios, identificar os donos, achá-los, notificá-los. Uma tarefa complexa, que levou Fernando Haddad e seu Secretário de Desenvolvimento Urbano, Fernando Mello Franco, a criarem uma diretoria específica de fiscalização da função social da propriedade, chefiada pelo competente advogado Fernando Bruno (não é por falta de Fernandos). Essa diretoria notificou nada menos do que 2 mil imóveis vazios na cidade. Porém, essa é uma tarefa que não deve parar nunca. Não me perguntem por que, a gestão Dória congelou essas notificações.

Uma vez identificados e notificados, além da Prefeitura passar a ter um mapeamento mais preciso dos prédios vazios, ela pode começar a negociar com os proprietários. O que é surpreendente é que muitas vezes estes se vêem felizes com isso. Se é verdade que em alguns casos os prédios vazios são de especuladores com pouco interesse no bem da cidade (há uma empresa que, sozinha, possui dezenas de prédios vazios no centro), em muitos outros os proprietários não conseguem alugá-los, simplesmente. Os apartamentos no centro são antigos, pouco adaptados às normas de segurança, e caros para o que são. Não é raro o proprietário ter apenas o térreo alugado com um bar, por exemplo, e acima dele os andares estarem todos desocupados por falta de demanda. Em outros casos, prédios recebidos por herança tornam-se um problema para o proprietário, que sequer tem dinheiro para reformá-lo. O que falta, nesses casos, é o apoio de uma política pública certeira, que vise resolver problemas e não perseguir os pobres.

Pois bem, o que propusemos no plano é uma ação da Prefeitura para procurar cada um desses proprietários, e oferecer-lhes um acordo: se deixassem os apartamentos em condições de uso, a Prefeitura os alugaria para colocar famílias de sua lista de demanda habitacional, pelo preço equivalente ao que ela paga de auxílio aluguel, algo em torno de 400 a 500 Reais por mês por unidade.  Além de garantir 100% de aluguel para o proprietário (por um valor talvez mais baixo do que o do mercado, mas com a certeza de uma ocupação total do imóvel), a Prefeitura retiraria a notificação do PEUC enquanto durasse o acordo, e o isentaria do IPTU como de outros eventuais impostos municipais. Uma equação interessante, para todos os envolvidos. Infelizmente, muitos proprietários recusam a proposta por dois motivos: primeiro, pelo baixo preço do aluguel oferecido. Segundo, por preconceito: acham que pessoas pobres vã lhes "trazer problemas". Deveriam ir visitar alguma das super organizadas ocupações para ver que lá há menos problemas que em muitos condomínios de gente rica. Resultado, os prédios ficam vazios, sem lhes trazer nada. É melhor um aluguel mais barato e ter um rendimento mensal certo, ou não receber nada e continuar mantendo um prédio vazio? Talvez a certeza da impunidade quanto à não-aplicação da Função Social seja o motivo da decisão.

O auxílio-aluguel é hoje pago às famílias muito vulneráveis, ou que tiveram que sair de suas casas precárias em razão de incêndios, desmoronamentos, enchentes, ou porque a prefeitura as retirou para realizar obras. As famílias recebem a ajuda por até dois anos, e com esse pouco dinheiro tentam achar algo para alugar na cidade. Embora tenhamos, na nossa gestão, transferido esse complexo sistema de pagamento para o sistema bancário, visando maior controle (antes era na base do cheque, sem muita transparência), o beneficiado uma vez recebido o auxílio, sai do controle da Prefeitura, indo alugar sua casa onde quiser.

Com essa proposta, a Prefeitura fecharia o círculo: o dinheiro não iria para pagar um aluguel na cidade sem nenhum acompanhamento, mas seria dado diretamente ao proprietário, garantindo à família um apartamento, em um contrato de aluguel gerenciado pelo próprio município. Um controle muito mais eficaz desses gastos, e sobretudo da qualidade da habitação alugada pela família, garantindo uma efetividade de seu uso para habitação, além do mais uma moradia bem localizada no centro da cidade. Seria uma espécie de locação social, só que usando o parque privado de antigos prédios vazios recuperados, e não um parque próprio de habitações públicas (que também deve ser constituído, como já dito, uma coisa não exclui a outra). 

Para fazer uma política dessas funcionar, há muitas coisas a organizar: uma delas seria conseguir junto às instituições financeiras públicas - como a CEF e o BB - linhas de financiamento facilitado para reforma (retrofit, no jargão) de prédios antigos no centro. Na França, consegue-se empréstimos a juros reduzidos para tal. Em troca, o proprietário se compromete a somente alugar seus apartamentos para habitação social gerenciada pela Prefeitura, por um determinado número de anos (geralmente 10 ou 15).

Outra questão a resolver é a definição do nível de qualidade que se deve exigir para uma "habitabilidade" mínima, de tal forma que não se reformem prédios para virarem cortiços. Há uma lei, a Lei Moura, que já define esses parâmetros mínimos, mas ela deve ser revista para aplicá-la nesse modelo proposto. Diga-se de passagem, uma vez definido isso, essa política pode tornar-se uma excelente ação para resolver o problema dos cortiços. Assim como nos prédios vazios, os donos de cortiços poderiam aderir ao mesmo sistema: reforma subsidiada, condições de habitabilidade, isenção de impostos e aluguel garantido pelo tempo que durar a parceria com a Prefeitura, em casarões reformados com unidades habitacionais dignas.

Nós já tivemos alguns programas incipientes que mostraram o quanto a reabilitação de prédios para uso habitacional pode ser frutífera. O Programa Minha Casa Minha Vida, que infelizmente o desgoverno Temer solapou, tinha uma modalidade muito interessante nesse sentido. O município podia oferecer um prédio (como contrapartida municipal), ou os movimentos achavam um por conta própria,  e a Caixa dava o financiamento para sua reabilitação (sem o valor da compra inicial, caso o prédio fosse dado pela Prefeitura). O Hotel Cambridge, tema do lindo filme de Eliane Caffé, é um prédio desapropriado pela Prefeitura, assim como o antigo Hotel Lord, com projeto de reabilitação feito pela COHAB, e entregue (após uma seleção rigorosa por meio de chamamentos públicos) ao Movimento dos Sem Teto do Centro, MSTC, da Carmen, líder corajosa daquela ocupação, e que conta com assessoria técnica da Peabiru para efetivar a conclusão do processo. Está só à espera do dinheiro do MCMV, que não vem, é claro. Porque governos golpistas não tendem a continuar políticas que realmente resolvem. Esse é o caso de muitos outros prédios, que podem ter também outras soluções, para além do financiamento federal: o da Rua São Francisco 77,  tem projeto do talentoso Celso Sampaio e está propondo uma parceria na gestão do imóvel que é da prefeitura, realizando algumas reformas com recursos próprios.

Quem andar pela Rua Conselheiro Crispiniano, em frente ao Teatro Municipal, poderá ver um lindo predinho (o da foto desta postagem), todo reformado pelo Movimento Unificação das Lutas de Cortiços e Moradia, coordenado pelo lutador e futuro arquiteto Sidnei Pitta, com projeto do competente Adelcke Rossetto, da Assessoria Técnica Integra. Um antigo prédio vazio e abandonado, cuja ocupação, em harmonia com uma boa política pública, transformou em solução. E há muitos outros assim, sempre tocados por pessoas maravilhosas e aguerridas na luta por moradia, tentando efetivar obras de reabilitação em um contexto em que a política pública não só não ajuda, mas atrapalha. Todo o contrário do que deveria ser.

Em resumo, enquanto nossa elite preconceituosa martela a mesma tecla, da criminalização dos movimentos, sempre com a visão de que cidade boa é cidade exclusiva dos ricos (sendo que a cidade dinâmica e viva é aquela que é realmente democrática), há gente trabalhando de outra forma, graças à luta incansável dos movimentos, aproveitando os raros momentos de avanço na gestão pública (que em São Paulo não durma mais de 4 anos, infelizmente). 

Prédios abandonados são um problema. Sua ocupação é solução. A bola está na Câmara Municipal, onde o Plano Municipal de Habitação aguarda ser discutido, melhorado, aprovado, para começarmos enfim a por em prática políticas concretas, em vez de ficarmos achando normal dizer que a culpa é dos pobres.

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