A Prefeitura de São Paulo tem um Deficit de R$ 7,5 bilhões?

Por Felipe Teixeira: 

Especialista em Gestão Pública. Formado em Relações Internacionais pela USP e Mestre em Economia pela UFRJ. Membro da Frente 3 de Fevereiro.

Originalmente publicado por Medium

 


 

Ao comentar o resultado da última pesquisa do Datafolha sobre a queda na aprovação da administração municipal, o atual Prefeito de São Paulo, João Doria Jr., justificou-se apontando um problema com as contas da prefeitura: "Temos R$ 7,5 bilhões de deficit no orçamento da prefeitura [em relação à receita prevista pela gestão anterior]. Que foi herança do PT, que nos deixou esse rombo". Não é a primeira vez que o Prefeito menciona um suposto deficit, ou rombo, que teria sido deixado pela gestão anterior. Como esse é um tema que me interessa e sobre o qual eu conheço um pouco, resolvi fazer um fact-checking, ou seja, uma checagem desse dado mencionado pelo Prefeito.

Rombo no Caixa?

Em primeiro lugar, é preciso deixar claro o que se entende por "deficit" ou por "rombo" nas contas da Prefeitura. O uso dessas palavras sugere ao público que a gestão do ex-prefeito Fernando Haddad teria deixado a situação fiscal do município em desequilíbrio, ou seja, que ele teria gastado mais do que arrecadou, deixando uma dívida para a atual gestão. Esse é o significado mais facilmente atribuído ao dado exposto pelo Prefeito.

Esse fato é muito simples de ser checado. O Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCM) fiscaliza a gestão fiscal da Prefeitura e produz um Relatório Anual de Fiscalização, no qual constam todas as informações sobre a disponibilidade de caixa ao fim de cada ano. Como o TCM fiscaliza o cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, é uma fonte confiável de informação para checar esse dado. O Relatório de 2016 não deixa dúvidas quanto à existência de R$ 5,35 bilhões em caixa ao final do mandato do Prefeito anterior, dos quais R$ 2,19 bilhões já estavam comprometidos com despesas no início do exercício seguinte. Havia, portanto, R$ 3,16 bilhões de saldo para a nova gestão, dos quais R$ 306 milhões eram recursos não vinculados, ou seja, que poderiam ser gastos da forma que a administração achasse melhor.

A própria Agência Lupa checou uma afirmação do ex-prefeito sobre o dinheiro deixado em caixa e atestou os valores presentes no Relatório do TCM.

A confirmação de que Haddad não deixou um deficit para seu sucessor não é surpreendente, dado que, ainda em 2016, havia sido anunciado que a gestão terminaria com dinheiro em caixa e que a equipe de transição do Prefeito eleito reconheceu que o fluxo de caixa da Prefeitura estava ajustado e que Haddad tinha “feito a lição de casa”. O então futuro Secretário da Fazenda, Caio Megale, afirmou que "as finanças [municipais] estão em bom estado, a gente não tem um deficit muito claro nas contas agregadas, o fluxo de caixa está ok, então é um balanço equilibrado". Em fevereiro de 2017, o Secretário apresentou a prestação de contas da gestão fiscal do terceiro quadrimestre de 2016 em Audiência Pública da Comissão de Finanças e Orçamento da Câmara Municipal, conforme exige a Lei de Responsabilidade, e atestou que "A execução fiscal de 2016 esteve completamente dentro das metas e dentro do que determina a Lei de Responsabilidade Fiscal".

Mas, se o governo atual recebeu a Prefeitura com dinheiro em caixa, isso significa que a afirmação do Prefeito Doria é falsa? Para responder a essa pergunta, precisamos retomar o significado da afirmação do Prefeito. Apesar de não reconhecer publicamente o dinheiro deixado em caixa pelo seu antecessor, o Prefeito Doria costuma explicar que está se referindo a outra coisa quando menciona o "deficit" ou "rombo" nas contas.

Falha nas Estimativas Orçamentárias?

A origem do dado de que havia sido identificado um “rombo” de R$ 7,5 bilhões nas finanças municipais está em uma notícia de uma apresentação do diagnóstico das contas da Prefeitura feita pelo Secretário da Fazenda em uma reunião de secretariado em março de 2017. O Secretário afirmou que “quando nós analisamos o orçamento aprovado na Câmara para 2017, as projeções de gastos e receitas, as despesas são subestimadas, tem uma série de despesas que muito provavelmente acontecerão e não estão lá orçadas e vão pressionar os gastos deste ano, e em contrapartida tem uma série de receitas que não acontecerão”.

Portanto, quando o Prefeito Doria se refere ao deficit de R$ 7,5 bilhões nas contas da Prefeitura, ele está se referindo aos fatos de as receitas terem supostamente sido superestimadas e as despesas terem supostamente sido subdimensionadas no orçamento municipal de 2017.

Para verificarmos essa informação, basta procurarmos os dados das receitas municipais no Portal da Transparência de São Paulo e os dados da execução orçamentária da Secretaria da Fazenda. Se de fato houve uma falha da ordem de R$ 7,5 bilhões (14% do orçamento de 2017) nas estimativas orçamentárias, deveríamos encontrar alguma discrepância relevante no comportamento da arrecadação e da execução orçamentária deste ano em relação ao ano anterior.

Pelo lado das receitas, comparei, mês a mês, a arrecadação de 2017 com a arrecadação de 2016. Para não gerar distorções que poderiam confundir os leitores, corrigi os valores de cada mês de 2016 pela inflação até o mesmo mês do ano seguinte, utilizando o IPC-A. A soma das Receitas Correntes (receitas de tributos, contribuições e transferências regulares do município) corrigidas de janeiro a agosto de 2016 totaliza R$ 32,33 bilhões. A soma das Receitas Correntes de janeiro a agosto de 2017 é de R$ 32,22 bilhões.

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Como vemos, os dados das receitas municipais indicam que, em 2017, elas estão seguindo um padrão muito similar ao de 2016, com uma pequena queda no valor total (cerca de R$ 110 milhões) até agosto.

A Lei Orçamentária Anual para 2017 previa uma receita total de R$ 54.694.563.143, sendo R$ 49.839.465.592 de Receitas Correntes. Já a Lei Orçamentária Anual para 2016 previa uma receita total de R$ 54.407.300.347, sendo R$ 46.284.059.761 de Receitas Correntes. Se corrigirmos esse valor de Receitas Correntes previstas em Setembro de 2015 (mês em que o Projeto de Lei Orçamentária Anual é encaminhado para a Câmara) pela inflação até Setembro de 2016, utilizando o IPC-A, temos um valor de R$ 50.478.395.311,04. Portanto, as receitas correntes previstas para o orçamento de 2017 foram menores, em termos reais, do que as receitas previstas para 2016. Se compararmos a porcentagem da Receita Corrente efetivamente arrecadada de janeiro a agosto em relação à Receita Corrente estimada para o ano todo, entre 2017 e 2016, chegamos a um resultado muito semelhante: 64,04% em 2016 e 64,64% em 2017, em valores reais. Na proposta orçamentária para 2018, elaborada pela gestão atual, está prevista uma receita total de R$ 56.260.564.579, sendo R$ 52.077.015.371 de Receitas Correntes. Isso representa uma aumento da Receita Corrente prevista de cerca de R$ 900 milhões (1,8%), em termos reais, em relação ao orçamento deste ano. Se houvesse um deficit no orçamento deste ano, se esperaria que a atual gestão corrigisse essa falha no orçamento do ano que vem.

Portanto, os dados da própria Prefeitura não indicam que as receitas tenham sido significativamente superestimadas para 2017.

Pelo lado das despesas, de janeiro a julho de 2017, a Prefeitura empenhou um total de R$ 34.302.618.097,56. No mesmo período de 2016, em valores corrigidos, foram empenhados R$ 39.300.470.224,12. Houve, portanto, uma queda de 12,72% nas despesas de um ano para outro, mesmo com uma arrecadação praticamente igual. Se houvesse tantas pressões de gastos não previstos no orçamento, se esperaria que o nível de despesas estivesse igual ou maior que o ano anterior.

Concluímos, portanto, que os dados da Prefeitura não apenas não apontam para um subdimensionamento das despesas, como sugerem que a Prefeitura está com uma disponibilidade de caixa cada vez maior, pois as receitas se mantiveram no mesmo patamar, mas as despesas caíram significativamente.

A constatação de que o orçamento de 2017 não parece conter erros de cálculo significativos também não é surpreendente, dado que, ainda em 2016, em meio a elogios do próprio Prefeito eleito com relação ao processo de transição, o coordenador da equipe de transição do novo Prefeito atestou que contou com a cooperação da equipe do ex-prefeito Fernando Haddad para realizar os ajustes necessários na Lei Orçamentária Anual para 2017. Se houve erro, portanto, a nova gestão também seria responsável.

De onde vêm os R$ 7,5 bilhões?

O ponto que falta esclarecer é como se chegou a esse valor de R$ 7,5 bilhões. Em nenhum momento a Prefeitura apresentou dados do diagnóstico das contas, apontando quais são os itens de receita que estão superestimados e quais são os itens de despesa que estão subestimados, e o valor de cada item que compõe o total de R$ 7,5 bilhões de deficit.

Para tentar entender como a Prefeitura chegou a esse valor e completar as análises aqui apresentadas, realizei um pedido pela Lei de Acesso à Informação para a Secretaria da Fazenda, solicitando que me enviassem a apresentação feita pelo Secretário na reunião de secretariado. Como a apresentação é um documento público não sigiloso, que não requer nenhum trabalho adicional de consolidação ou tratamento de dados, a Prefeitura é obrigada por lei a enviar o documento, ou informar que ele não existe. A Secretaria da Fazenda prorrogou o prazo do pedido e, ao final, me enviou uma resposta com uma explicação genérica sobre como funcionam as previsões de receitas e de despesas no município. Entrei com recurso no dia 7 de setembro e até hoje não obtive resposta. A única informação relevante enviada na resposta da Secretaria foi o seguinte gráfico:

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Esse gráfico confirma as conclusões das análises aqui apresentadas, pois indica que a diferença esperada entre a receita prevista e a realizada em 2017 é menor do que a de 2016, o que contradiz o diagnóstico utilizado pelo Prefeito.

Ao final de toda essa análise, podemos afirmar, com segurança, que a Prefeitura de São Paulo não tem um déficit de R$ 7,5 bilhões.

A grande dúvida que fica é por que a Prefeitura não apresenta a conta que foi utilizada para se chegar ao diagnóstico de que há um "rombo" de R$ 7,5 bilhões?