Sobre a política habitacional de Haddad e o conluio da mídia com o Estado

João Whitaker e Geraldo Juncal*

Quando a Folha deixa de ser um jornal para ser panfleto político

Neste início de ano, o Secretário de Estado de Habitação, Rodrigo Garcia, concedeu entrevista à Folha de S. Paulo (clique aqui), na qual permitiu-se lançar uma série de opiniões, bastante questionáveis e em grande parte inverídicas, atacado nossa gestão na SEHAB e na COHAB e o governo de Fernando Haddad.

Surpreendeu-nos o fato de que um Secretário de Estado venha à grande imprensa para discorrer sobre a política de habitação do município. Afinal, há um Prefeito e um Secretário Municipal em exercício, com quem aliás realizamos excelente transição, e é sintomático que um membro do alto escalão do Estado apareça como porta-voz da política municipal. É de se perguntar se a política da cidade será conduzida de fato a partir da prefeitura, ou diretamente do Palácio dos Bandeirantes.

A Folha de SP pareceu atuar quase como porta-voz oficial do Governo do Estado. Perguntas habilmente dirigidas para fomentar confusão e induzir os leitores a conclusões fáceis. O título da entrevista, sobretudo, trazia manchete suspeitíssima: “PT deu vez a movimentos de moradia 'amigos do rei'”. A entrevista procurava passar ao leitor três ideias-chave, todas elas bastante duvidosas:

1) a de que o governo de Fernando Haddad “favoreceu” (não explicando no que e nem como) os movimentos sociais “amigos”, dando a entender tratar-se do MTST do Boulos, em detrimento de uma suposta “lista de espera” que teria sido assim desrespeitada. Levantava suspeitas levianas (“ouvi dizer que”) sobre a honestidade dos movimentos sociais. Com isso, o jornal e o secretário, em dupla afinada, reforçavam o atual esforço conjunto do governo golpista, de parte do Ministério Público e da mídia, de criminalizar os movimentos sociais e inculcar a ideia de que os governos petistas são coniventes ou até mesmos cúmplices dessa suposta criminalização, que na verdade não existe.

2) a de que a gestão de Fernando Haddad foi omissa em relação à ocupação de prédios no centro da cidade – que a direita chama indiscriminadamente de “invasões”, mesmo se os casos são bastante variados e envolvem desde ocupações legítimas até invasões comandadas pelo crime organizado;

3) a de que o Estado é muito mais eficiente do que nós fomos, no município, na produção habitacional, no que se alinha à própria Folha para martelar o argumento, falacioso também, de que não cumprimos nossas metas nesse setor.

Conseguimos, em esforço da equipe de comunicação do governo Haddad, espaço para resposta junto ao jornal, que concedeu-nos entrevista no dia 14 de janeiro (clique aqui). Ingenuidade nossa. Caímos na armadilha da Folha. Generalizando algumas passagens específicas da longa entrevista, em que comentamos e alertamos sobre o nefasto crescimento da presença do crime organizado em ALGUMAS ocupações do centro, e o enorme desserviço que isso traz aos movimentos legítimos, pois ajuda a articulação para criminalizá-los indiscriminadamente, a Folha intitulou de forma irresponsável a entrevista, com a seguinte falsidade: “Criminosos estão por trás de invasões no país, diz ex-secretário de Haddad”. Em nenhum momento da entrevista, devidamente gravada, tal afirmação foi feita.

A intenção era clara: manipular nossos argumentos dando a entender que não só os petistas favorecem movimentos amigos (afirmação feita pelo secretário Garcia em sua entrevista), como esses movimentos são generalizadamente criminosos, atuando em todo o país. A resposta dada à Folha, em nota nas redes sociais, está replicada ao fim deste texto, para os interessados. O que ficava claro disso tudo, porém, era que a Folha atuou não para fazer jornalismo, mas política, mostrando que participa conscientemente do esforço conservador do novo governo golpista e do governo estadual em criminalizar os movimentos sociais.

A manobra tornou-se ainda mais cristalina quando, poucos dias depois, Guilherme Boulos foi detido ao defender a população despejada de um terreno em São Mateus em violenta e desnecessária reintegração de posse. Em capciosa interpretação livre, o jornal faz crer que quando, na entrevista, falávamos do crime organizado (referindo-nos ao tráfico de drogas e suas organizações que atuam no centro da cidade), estávamos incluindo todos os movimentos e, em especial, o MTST de Boulos. Na reportagem sobre a prisão de Boulos, a Folha publicou a seguinte frase: “A prisão ocorre após Boulos ser criticado pelo secretário estadual de Habitação do governo Geraldo Alckmin (PSDB), Rodrigo Garcia (DEM), que afirmou em entrevista à Folha que Boulos foi favorecido durante a gestão de Fernando Haddad (PT). O ex-secretário de Haddad, arquiteto João Sette Whitaker, disse também à Folha que há movimentos sem-teto de fachada criados por criminosos".

Manipulação insidiosa das palavras, obra do pior jornalismo. Ao trazer uma afirmação de outra entrevista, de forma deslocada, a Folha insinua não só que concordamos com o secretário estadual sobre algum tipo de favorecimento a Boulos, como dá a entender que também achamos que seu movimento faz parte daqueles criados por criminosos. Disso tudo, pelo menos fica escancarado ao leitor o papel nefasto que os grandes jornais, como a Folha, vêm tendo neste país. E que quando Estado e mídia se unem com o mesmo objetivo de manipulação política, o resultado pode ser devastador.

Estado tucano eficiente, prefeitura petista não

Retomemos então os três argumentos-chave alinhavados pelo Secretário de Estado e pela Folha. Comecemos pelo último, de que o Estado seria muito mais eficiente do que nós fomos no município na produção habitacional, e que a nova gestão municipal tucana contratará em um semestre 12 mil unidades na cidade, para entregar em dois anos. A previsão parece otimista se consideraremos que o Estado, entre 2010 e 2016, em seis anos e não em seis meses, produziu na cidade, ao todo, 7.888 unidades apenas (dados da CDHU). É no município que se concentra 57% da demanda por moradia no Estado, e a CDHU, empresa estatal de habitação, lhe destina apenas 12% da sua produção. Uma clara demonstração de que o Governo do Estado não faz política onde precisa, ou seja, onde há de fato demanda habitacional de baixa renda (a Região Metropolitana), mas onde lhe interessa politicamente, mesmo que não haja demanda significativa. Assim, direcionou nos últimos anos 88% de seus investimentos para o interior, onde está apenas 43% da demanda, mas onde o governo constitui assim importante rede política para a manutenção de seu poder no Estado

A produção do Governo do Estado nos últimos anos limitou-se, e isso o secretário “esquece” de mencionar, a apenas uma complementação de recursos para a política federal do Minha Casa, Minha Vida (MCMV), criado por Lula. Nem de longe a CDHU gasta, aliás, os 1% do ICMS a que tem obrigação, para produção de moradia, o Estado preferindo garantir seu superávit a enfrentar com seus recursos uma questão tão importante.

Se a nova gestão da Prefeitura contratar 12 mil unidades em seis meses, como prometem, isso só poderá acontecer porque a gestão Fernando Haddad deixou nada menos do que 34.659 unidades já licenciadas e prontas para início de obra. Aliás, contradizendo a ladainha das metas não-cumpridas, vale reforçar que na nossa gestão entregaram-se cerca de 15 mil unidades (14.951), apesar da interrupção dos recursos do MCMV a partir de 2014, e deixaram-se outras 21.828 unidades em obras. Somando-se os três, temos que a gestão viabilizou, entre obras concluídas, iniciadas ou projetos licenciados prontos para início (porque o processo de produção com entrega final de uma moradia é longo e quase sempre demora mais do que quatro anos), nada menos do que 71.375 unidades, um recorde absoluto na cidade. Tudo isso foi possível, e continuará sendo na próxima gestão, pelo fato de que o novo Plano Diretor Estratégico aprovado em 2014 por Fernando Haddad e premiado recentemente pela ONU, abriu a possibilidade de uma verdadeira política de terras na cidade, que dobrou as áreas especiais para habitação social, as ZEIS, e alavancou R$ 617 milhões em desapropriações de áreas bem localizadas e infraestruturadas para a produção habitacional. Com isso tudo, prometer contratar pouco mais de dez mil unidades soa até modesto, para falar a verdade.

É desonesta a afirmação da entrevista de que na nossa gestão “São Paulo foi das cidades que menos contratou” projetos do MCMV. Isso de fato ocorreu, porém....na gestão anterior, de Kassab, na qual aliás Rodrigo Garcia era secretário. Entre 2009 e 2012, anos de pico do programa federal, Kassab, ex-vice de Serra e hoje novamente aliado do PSDB, optou pelo não-alinhamento ao MCMV e por isso a cidade produziu apenas 8.064 unidades de HIS para as faixas de mais baixa renda, no auge do programa, enquanto que o Rio de Janeiro, por exemplo, fez nada menos do que 27.376 no mesmo período, cerca de três vezes mais. A gestão Haddad teve, portanto, árdua tarefa em realinhar a cidade ao programa e fazer as mudanças necessárias, inclusive no plano diretor. Na Gestão Haddad, São Paulo tornou-se a primeira e única cidade do país a fazer também uma complementação ao MCMV, de R$ 20 mil, criando o chamado programa Minha Casa Paulistana.

Todo esse esforço, entretanto, pode ter sido em vão. A grande qualidade do MCMV era a de subsidiar s unidades habitacionais, conseguindo assim beneficiar de fato os realmente mais pobres, sem nenhuma condição de pagamento, ao que a Prefeitura fazia um aporte para viabilizar os projetos apesar do alto custo da terra na cidade. Porém, como vem anunciando o governo, o MCMV irá a partir de agora quase que exclusivamente focar a chamada Faixa 1,5. Ou seja, fim dos subsídios e do atendimento aos realmente mais necessitados. Como nos tempos do regime militar, a política federal irá focar aqueles que podem pagar por sua casa, e deixar de fora a demanda mais premente dos mais pobres. Formas de se entender o que deve ser a política pública….

Surpreende também o discurso da nova gestão municipal (por meio de seu porta-voz do Governo do Estado), de que havia na nossa gestão uma suposta morosidade na produção habitacional, anunciando com a mesma pompa com que se anuncia que a cidade será pintada de cinza, uma “desburocratização” dos licenciamentos habitacionais. Discurso vazio e puramente enganador, já que a gestão Haddad bateu todos os recordes nesse sentido. Atualmente, há extraordinários 85.735 projetos de HIS em licenciamento na Prefeitura, o que com os já viabilizados, soma 157.110 licenciamentos de unidades de habitação sociais iniciados em uma única gestão, algo nunca antes visto no Brasil. Para alcançar tal feito, a gestão Haddad tomou uma série de iniciativas, que estranhamente a nova gestão vem sistematicamente desmontando: criou uma secretaria especial para a aprovação de projetos, a Secretaria Municipal de Licenciamento-SEL, com o intuito de combater a corrupção endêmica que existia no setor na gestões anteriores. Dentro dela, em trabalho conjunto com a Secretaria de Habitação-SEHAB, formou departamento e procedimentos específicos e celeres para as aprovações de habitações de interesse social. Além disso, Haddad como se sabe criou a Controladoria Geral do Município-CGM, responsável por dar transparência à administração e sobretudo coibir clientelismo e corrupção. Pois bem, Dória Jr. já desfez a imprescindível autonomia da CGM, subordinando-a à Secretaria de Justiça, e extinguiu a SEL, voltando a colocá-la dentro de outra secretaria. Ações muito estranhas para quem diz querer desburocratizar e agilizar os processos de licenciamento.

Prédios no centro

A segunda ideia colocada, de que a gestão de Fernando Haddad foi omissa em relação à ocupação de prédios no centro da cidade, é mais uma vez pura retórica enganosa. Donos de prédios particulares vazios são geralmente improvidentes quanto ao cumprimento da função social da propriedade. Em outras palavras, seus imóveis custam caro para a sociedade em infraestrutura, para ficarem sem uso. Muitos movimentos de moradia, cientes dessa questão e usando-a como instrumento para demonstrar o absurdo da falta de moradia para os mais pobres quando há tantos imóveis ociosos, os ocupam para pressionar seus proprietários a vendê-los. Em alguns casos, a negociação entre eles – da qual a prefeitura sequer é parte – dá certo e os prédios conseguem ser adquiridos pelos movimentos e reabilitados para habitação, com financiamento da política habitacional do MCMV, como ocorreu na exemplar recuperação de prédio na Rua Conselheiro Crispiniano, financiada pela Caixa. Importante observar que nesses casos não há relação nenhuma com qualquer lista de atendimento da prefeitura, com prioridades ou o que quer que seja, diferentemente do que deixa entender a enganosa entrevista. É errônea, e por isso maldosa, a insinuação da reportagem de que a Prefeitura deveria solicitar a ação policial para reintegrar prédios particulares, já que essa não é uma atribuição do Município, que nem tem poder para tal ato. A reintegração sempre é pedida pelo proprietário, corre na Justiça e é aplicada pela polícia, estadual, como se sabe.

Para evitar confrontos violentos, o que é uma responsabilidade pública, como o que ocorreu no Hotel Aquarius, a SEHAB promoveu sempre que possível a mediação nesses processos, conseguindo, algumas vezes, uma solução de consenso que evitasse a efetivação da reintegração de posse. Atuamos até para evitar reintegração em área do Estado, da CDHU, que iria afetar cerca de duas mil famílias. Em algumas situações, em que o preço do imóvel e o custo da reabilitação estão dentro dos valores praticados pelo Poder Público, é até possível promover a desapropriação do prédio para fins de moradia, observando porém que, nesses casos, a lista de beneficiários passa a ser a da SEHAB, e o prédio, na nossa gestão, destinado prioritariamente à locação social. Porém, é fato de que muitas vezes as avaliações realizadas pelos peritos judiciais é estranhamente acima do razoável, como no caso do Aquárius, em que foram pedidos surreais R$ 40 milhões pelo prédio, inviabilizando qualquer possibilidade de desapropriação.

Outra afirmação estapafúrdia feita para desqualificar nossa gestão é a de que a prefeitura foi “relaxada” em relação aos prédios de sua propriedade que foram ocupados. Mais uma mentira: todos os imóveis públicos (prédios e glebas) municipais ocupados, alguns inclusive na gestão Kassab, foram objeto de ações de reintegração de posse ou aguardam a devida autorização judicial, pois tinham uso definido ou projetos em andamento. Vale dizer que não há cabimento o Poder Público deixar prédios próprios ociosos, como ocorre por exemplo com o da Rua do Ouvidor, propriedade do Estado e vazio há décadas. Na Prefeitura, sob o comando do Prefeito Fernando Haddad, não foi assim. Todos os prédios vazios foram objeto de políticas públicas, seja visando sua reabilitação para habitação – essencialmente para locação social, as vezes para públicos específicos, como idosos, população em situação de rua, etc. – seja para atividades da própria administração. Mais do que isso, nossa gestão fez inédita negociação com o INSS, adquirindo cerca de 15 imóveis ou terrenos daquela instituição, em troca da sua dívida com a Prefeitura, para destiná-los ao programa de locação social.

Mas, o leitor pode indagar, com razão, por que afinal os movimentos ocupam prédios públicos com políticas previstas para eles? Pois é, porque nesses casos, QUE SÃO APENAS ALGUNS CASOS, não são exatamente “movimentos”, mas geralmente grupos associados ao crime organizado que se travestem em “movimento”, invadem esses prédios, para prejudicar politicamente a Prefeitura e a Gestão Haddad e para instalar ali biqueiras de venda de drogas, e coagir gente pobre e indefesa – quase sempre imigrantes recém-chegados do Haiti, da Bolívia, da Síria – oferecendo moradia com cobrança indevida e abusiva de aluguel e tratamento violento, como ocorreu, por exemplo, no famoso Cine Marrocos. Nesse caso, o “nome” do movimento, MSTS, só ajuda (propositalmente?) a confusão. Esses grupos fazem enorme desfavor ao movimento de moradia, ao criar confusão e ajudar a grande imprensa e os setores conservadores a tratar também o movimento legítimo como se fossem criminosos. Foi o que fez o secretário de Estado, e a Folha reforçou na semana seguinte, ao “confundir” o MTST de Boulos com esses movimentos criminosos. Uma coisa não tem nada a ver com a outra, e isso foi dito muito claramente na nossa entrevista, posteriormente manipulada. Muito pelo contrário, o que dissemos é que os movimentos legítimos são fundamentais para a política pública de moradia, até mesmo porque ajudam a diferenciar os movimentos ilegítimos e apontar a ação do crime organizado que tanto os prejudica. Se uns fazem ocupações como forma de luta pela causa da moradia, os outros fazem invasões à mão armada, o que é bem diferente.

Afirmar que com essas explicações, estávamos dizendo que “o crime organizado está por trás de invasões no Brasil” é fazer uma generalização, no mínimo, mal intencionada. O secretário de Estado deveria ser cuidadoso ao criminalizar os movimentos, pois os verdadeiros criminosos, estes sim, às vezes estão mais perto do que parece. No caso dos do Cine Marrocos, que promoveram um mês de “acampamento” em frente a prefeitura, com barracas reluzentes de novas (quem pagou?), para reclamar que não os atendíamos (com razão, pois não negociamos com bandidos), se aproximaram muito dos comitês eleitorais tucanos, como mostrou reportagem do Diário do Centro do Mundo (clique aqui). Os oportunistas ligados ao crime se aproximam de qualquer um, fazem campanha política em troca de espaço, e não raramente políticos são surpreendidos por terem posado em fotos com eles. Mas, neste caso, não fomos nós, pelo contrário: enfrentamos sem titubear. Quatro meses depois do acampamento na prefeitura, o líder da invasão (neste caso, é o termo correto) do Cine Marrocos foi preso em operação policial no edifício, com mais de 15 Kg de crack, duas escopetas, e sistemas de video segurança instalados no prédio. Revelou-se que o sujeito era dono de uma mansão e de boate em Santana. É disso que estamos falando, e juntar tudo numa entrevista como se fosse uma coisa só é apenas mais um movimento no sentido de gerar confusão e criminalizar injustamente os movimentos que combatem o não cumprimento da função social da propriedade. Pois vale lembrar, manter um prédio vazio em área infraestruturada é, desde a aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, também ilegal.

"Favorecimento" a movimentos

Passemos enfim à primeira das questões que alimentaram o ataque à nossa gestão. A de que nosso governo favoreceu alguns movimentos sociais “amigos”, e em especial o MTST do Boulos, no atendimento habitacional, em detrimento de uma suposta “lista de espera” que teria sido assim desrespeitada. O secretário de Estado, em sua entrevista, cita nominalmente dois empreendimentos do MTST, o Copa do Povo e o Palestina. Mais uma vez, discurso falacioso, que só pode visar a enganação. Primeiro porque esses dois empreendimentos são privados, ou seja, promovidos pela própria entidade, sem a participação da prefeitura ou recursos municipais para a aquisição e desenvolvimento do empreendimento. Jogar uma “culpa” da ocupação na falta de atenção da prefeitura é falacioso, pois esse não é o seu papel. A GCM tem como missão a proteção dos bens públicos municipais, não de áreas particulares. A “proteção” dessas glebas fica a cargo de seus proprietários e, caso estejam em áreas de proteção, da polícia ambiental, estadual.

Há enormes glebas mantidas vazias durante décadas por seus proprietários nas periferias da cidade, muitas perto dos mananciais, mas não nas bordas, e com condições de adensamento, até mesmo para retirar a população que vive às margens da represa em condições precárias. Pura especulação imobiliária, não raramente são de propriedade de grandes empresários do setor imobiliário, que um dia lucrarão com sua venda e até trabalham para que alí se aprovem empreendimentos, por exemplo, do MCMV. Não é errado que tais áreas sejam adensadas, com unidades habitacionais conectadas à rede de esgoto, pois isso é uma ação ambiental importante para esvaziar as áreas lindeiras à água, onde a população acaba lançando o esgoto in natura para a água. Por isso foram criadas, já no Plano Diretor de 2002, as ZEIS 4, destinadas a promover habitação social em áreas possíveis dos mananciais. Com um detalhe: pela lei estadual dos mananciais, nenhum empreendimento pode ser ocupado por famílias que não tenham sido retiradas, obrigatoriamente, da própria área dos mananciais. Nem o Boulos, nem ninguém.

Se a ocupação dessas áreas ociosas como método político de pressão pela sua ocupação é uma ação aceitável ou não, é uma questão de opinião. O fato é que o MTST ocupou a área e conseguiu posteriormente adquirí-la, e pressionou a Câmara para que fosse designada como ZEIS 4 na Lei de Zoneamento. Coisa que não conseguiu para o Copa do Povo, onde a ZEIS 2 pretendida não foi demarcada, mantendo-se uma ZPI (Zona Predominantemente Industrial, que permite também a construção de moradias, mas em menor número). Não adianta querer dizer que isso foi feito ou desfeito pela Prefeitura, que houve “favorecimentos”: o zoneamento e a definição de ZEIS é lei, acolhida e votada pela Câmara Municipal, e representa a vontade do legislativo. Se tem gente que não concorda está em seu direito, mas deve ir cobrar a Câmara, e não acusar o executivo do que quer que seja. Pois bem, uma vez adquirida a área, o MTST apresentou projeto de moradias para um financiamento do MCMV, absolutamente legal, e o obteve, passando por todas – e são muitas – as exigências da Caixa. À Prefeitura cabe tão somente licenciar o mesmo, dentro das exigências legais, fortemente enquadradas pelas regras ambientais, o que foi feito. Vale anotar: nesse caso, os dois empreendimentos preveem a implantação de parques para o uso publico, integrando-os a seu entorno.

Mas a reportagem da Folha se vale de outra pequena manobra, na entrevista com o Secretário de Estado. Dando a entender que estão falando da prefeitura, passam a analisar o funcionamento interno dos movimentos, porém sem deixar isso claro. Argumentam sobre favorecimentos internos a quem comparece ou não às assembleias, a quem tem identidade partidária com as lideranças, dizendo que como recompensa “furam” a lista e são colocados na frente. Ora, estão falando das listas internas do próprio movimento, nada a ver com qualquer lista de atendimento habitacional do Poder Público. Mas o texto é de tal forma construído que dá a impressão de que quem faz isso, favorecer seus “amigos” é a Prefeitura e o PT, essa insinuação servindo até como título para a reportagem. Os movimentos, internamente, geralmente definem quem será atendido em um ou outro empreendimento em função da mobilização e da participação das famílias, sua disposição em participar das atividades de mutirão, etc. Isso é absolutamente normal. Se há movimentos que abusam dessa lógica, contaminam-se por critérios partidários ou de amizade com as lideranças, temos certeza que eles não terão vida longa, desfazendo-se por si mesmo. Afinal, um movimento, para ser forte, precisa ter coesão interna e legitimação de suas lideranças, o que dificilmente ocorreria se as práticas apontadas fossem assim tão comuns. Mas, de qualquer modo, sempre vale ressaltar que, ao contrário do que se insinua, o que ocorre ali não tem nada, absolutamente nada a ver com a administração pública, ou com o PT.

Para aprofundar a confusão, o Secretário Garcia diz em sua entrevista: “Aqui no Estado, quem invade vai para o fim da lista…os movimentos de moradia amigos do rei tiveram vez na administração petista”. Não sabemos a qual ação do Estado o Secretário se refere, já que lá, não se fazem chamamentos públicos para empreendimentos habitacionais dos movimentos desde 2011. No caso da Prefeitura, foram feitos 12 chamamentos pela COHAB, para empresas e entidades sociais, nesta gestão. Todos no formato de licitações públicas, com sistemas rígidos de pontuação, e nenhuma possibilidade de favorecimento a quem quer que seja. Aliás, a verificação é simples, e a observar os vencedores dos chamamentos, fica fácil identificar muitas entidades simpatizantes de todo o espectro político-partidário, inclusive do PSDB.

Mas o que são, exatamente, esses chamamentos? Muito simples: o programa federal MCMV oferece – ou melhor, oferecia, antes do golpe – financiamento para empreendimentos particulares, seja de movimentos ou de empresas, realizados em terrenos próprios, como é o caso dos empreendimentos do MTST citados. Para ajudar essas operações, tanto o Estado quanto o Município entram com um aporte adicional, de R$ 20 mil. Além disso, o município participa do empreendimento apenas na parte das aprovações. Mas há outra modalidade, em que os municípios participam de forma mais efetiva, entrando com a terra. Na maioria das cidades brasileiras, “sobram” para o MCMV terrenos distantes e com pouca infraestrutura. No caso de São Paulo, os avanços do Plano Diretor permitiram grande número de desapropriações e a destinação de número inédito de terrenos para projetos de habitação social em áreas com infraestrutura. Esses terrenos são então oferecidos por meio dos “chamamentos”, para a escolha por licitação das empresas e das entidades que ficarão responsáveis pela construção, em cada uma das modalidades do programa (FAR-Empresas ou FDS-Entidades), recebendo o financiamento da Caixa.

A escolha é feita por critérios rigorosos e pontuações, em que se pesa o histórico da empresa ou do movimento, sua capacidade de assumir a produção pretendida, o projeto existente, etc. Não há a menor possibilidade de favorecimento, como se insinua. Alás, é interessante observar como a mídia e os governos conservadores se atém a falar dos movimentos, mas nunca levantam favorecimentos a empresas. Nenhum dos dois ocorre, mas se é para desconfiar, por que sempre se visa o movimento social e não o empresariado? Ainda mais considerando que a modalidade Entidades, proporcionalmente, é quase insignificante ao lado da produção das grandes construtoras. Como na administração Haddad deu-se um pouco mais de espaço à produção autogestionária dos movimentos em relação às demais cidades brasileiras (sem entretanto mudar muito a proporção), isso foi mal visto politicamente pelos que acham que os movimentos devem ser alijados do processo. Questões de ponto de vista.

A COHAB disponibilizou 124 terrenos ou imóveis, 42 na modalidade FAR-Empresas/Faixa 1, com potencial para a construção de 16.361 unidades, e outros 82 na modalidade FDS-Entidades/Faixa 1, correspondendo a um potencial de mais 13.143 unidades habitacionais. O maior número de terrenos para as entidades, para um total de unidades quase equivalente, se explica porque os terrenos são menores do que os oferecidos às empresas, que trabalham com quantidades de produção bem maiores. Empresas e entidades venceram as licitações e passaram a trabalhar com a Caixa para a contratação dos projetos. Infelizmente, com as mudanças políticas sofridas e a interrupção do PMCMV, grande parte desses empreendimentos está hoje apenas à espera da liberação das verbas federais. Por isso é fácil dizer que a Prefeitura contratará rapidamente 12 mil unidades. Não duvidamos, o trabalho foi, de fato, bem feito.

E as pessoas beneficiadas, afinal, são de uma “lista”, a qual pode eventualmente ser “furada”? Não. Isso é mais uma falácia alimentada pela má-fé. Nos empreendimentos do MCMV Empresas, metade dos beneficiados é sorteado, de uma lista da COHAB na qual qualquer cidadão pode se inscrever, mas da qual serão contemplados apenas aqueles que estejam dentro dos diversos critérios do programa, a começar pela baixa renda (mas também outros fatores de prioridade, como mulheres chefe de família, pessoas deficientes ou doentes na família, mulheres vítimas de violência, etc.). A outra metade é da lista da própria prefeitura, que é basicamente a das 30 mil famílias que recebem auxílio-aluguel, tendo sido retiradas de áreas de risco, por obras, etc. Tal atendimento é devidamente controlado, inclusive pelo Ministério Público. No caso de empreendimentos feitos por empresas no âmbito do PAC, toda a demanda é definida pela prefeitura, mas obrigatoriamente de famílias retiradas de áreas com obras do mesmo programa. No caso de urbanização de favelas, a lista parte da relação dos moradores da área afetada, e assim por diante. Não há, portanto, exatamente uma lista, mas sim formas de atendimento variadas dependendo de cada programa, de cada modalidade. No caso da modalidade “Entidades”, é a regra do programa que a entidade selecionada seja responsável pela indicação dos beneficiados. Na maioria das vezes, há cruzamentos, os participantes dos movimentos estando, como já dito, em algumas dessas listas de atendimento. A política habitacional correta é aquela que faz uma composição adequada entre as diferentes demandas, atendendo suas emergências, os movimentos, as regras dos diferentes programas de financiamento, etc.

Desejamos êxito à nova gestão: afinal, são os mais pobres que pagam o preço das disputas políticas

Alimentar a desinformação, o ódio partidário e o preconceito com os movimentos sociais em nome da disputa política é, a nosso ver, o inverso da boa política. A política desejável é aquela que se faz em nome e para o bem dos cidadãos, e não em função da disputa pessoal do poder. Saímos da prefeitura de cabeça erguida e com o orgulho do trabalho bem feito, em prol dos paulistanos, em especial os mais pobres. Abrimos diálogos, construímos com participação e transparência. Essa foi a marca da Gestão Haddad. Por isso, não entraremos na guerra da difamação. Apenas responderemos, item por item, qualquer inverdade dita sobre nosso trabalho. E desejamos êxito às equipes da Secretaria de Habitação e da Cohab, certos de que a nova equipe, se quiser trabalhar sério, certamente encontrara melhores condições para que a cidade consiga finalmente uma produção de HIS adequada ao tamanho das necessidades da população. Pois afinal, quem sofre com essa escalada difamatória são os que mais dependem das políticas habitacionais. Para além dos projetos já citados que dependem dos recursos do governo federal, deixamos quase 1500 unidades contratadas, outras 3 mil em obras e aproximadamente 4 mil em condição de contratação, nas operações urbanas. E, é claro, um Plano de Habitação inovador, construído com a participação presencial de 5 mil paulistanos e outros 15 mil por internet, que foi enviado à Câmara na forma de Projeto de Lei e dá uma linha para a política de moradia na cidade para os próximos 16 anos. Não será por falta do que fazer. Quando a cidade se cobre de cinza por sobre o colorido e a liberdade da arte de rua, quando os acidentes crescem pelo aumento irresponsável dos limites de velocidade nas marginais, quando farmácias do SUS na periferia são fechadas, torcemos para que pelo menos na habitação, área tão esquecida, o trabalho sério continue.

 

*João Whitaker foi Secretário de Habitação e Geraldo JUncal presidente da COHAB na Gestão Fernando Haddad


ANEXO

RESPOSTA À ENTREVISTA CONCEDIDA À FOLHA DE S.PAULO EM 14/01, EM NOTA PUBLICADA NAS REDES SOCIAIS

Quando a Folha desiste do jornalismo para fazer política

Na semana passada, a Folha realizou entrevista com Rodrigo Garcia, secretário de Estado de habitação, na qual ele, no seu papel de político com uma ajudinha da grande imprensa, desqualifica a gestão Haddad e nosso trabalho à frente da Sehab, com uma série de informações equivocadas e nada verdadeiras.

Ainda amanhã estarei postando em meu blog artigo meu e do Gera Juncal, brilhante gestor que me deu a honra de presidir a Cohab na minha gestão, respondendo em detalhes a entrevista de Garcia.

Embora em férias, concedi longa entrevista ao mesmo repórter, de mais de uma hora. Confesso que dada a duração da conversa o repórter até que conseguiu reproduzir partes da minha fala corretamente, claro que selecionando os temas que mais lhe pareciam importantes, e resumindo muito, muito mesmo. Mas ok.

Em compensação, fiquei enojado, esse é o termo, com a manipulação do editor ao escolher o título. Mais ainda com o.titulo.que apareceu no UOL. A Folha com isso veste a carapuça: mostra que participa conscientemente do esforço conservador do novo governo golpista em criminalizar os movimentos sociais, fazer o grande público acreditar que movimentos de moradia são criminosos. Para polemizar sem fazer jornalismo (que seria o ato de informar sem tomar partido e procurando ser fiel ao meu pensamento, para o que dispõe de uma hora e tanto de reflexões gravada), se alinha aos objetivos do entrevistado tucano da semana passada: para os leitores desavisados que só lêem manchetes, fica a dupla mensagem: os movimentos são criminosos e favorecidos pelo PT.

Para que fique bem claro, vamos colocar os pingos nos is. Segue um resumo, sob o meu prisma, do que eu mesmo falei, especificamente sobre o tema do título, dentre muitos outros assuntos, e que tenho gravado, evidentemente:

1) que os movimentos de moradia são a organização mais legítima de luta por moradia, que a grande maioria são movimentos orgânicos e sérios, que lutam há décadas por essa causa;

2) que as políticas que dão espaço para a produção autogestionada são muito importantes, como o MCMV Entidades, pois essa é uma das formas mais interessantes de fazer moradia, que tem tradição e vem demostrando excelentes resultados - senão os melhores do ponto de vista da qualidade arquitetônica. Disse que, aliás, um dos primeiros mutirões foi criado pelo Mário Covas, o que relativiza a partidarização que se faz dessa modalidade;

3) que a manutenção de imóveis e glebas vazias - muitas para fazer especulação - é ilegal pelo Estatuto da Cidade, pois não cumprem a função social da propriedade, e que ocupá-los, gostem ou não, é uma forma legítima que os movimentos têm de fazer política, apontando para o grande número de imóveis nessas condições, e muitas vezes conseguindo com sua pressão uma solução para reabilitá-los para moradia. Vale dizer que no Brasil são cerca de 5 milhões de unidades habitacionais vazias, quase o tamanho do déficit.

4) que nesse embate jurídico-político, os entes em disputa são os proprietários e os movimentos, ou seja, todos privados, e que a prefeitura em geral não tem muito o que fazer ou falar em casos de reintegração pedida pelos proprietários, já que nem é parte jurídica do processo. Quando possível, faz a mediação para evitar confrontos violentos na cidade, e verifica a possibilidade de desapropriação para destinar o prédio, no caso da nossa gestão, preferencialmente para a política de locação social. Que as avaliações periciais pedidas pelos juízes são quase sempre ultra valorizadas, inviabilizando a operação pelo poder público (como ocorreu no Hotel Aquarius).

5) que nossa gestão diferenciou as ocupações feitas por movimentos conhecidos e legítimos de ALGUMAS outras, infelizmente cada vez mais frequentes nestes últimos anos, que OPORTUNISTICAMENTE fazem não ocupações mas sim invasões, as vezes à mão armada, travestindo-se de "movimentos" para fazer coação contra imigrantes pobres alugando unidades e quase sempre usando o prédio como fachada para o tráfico de drogas. São invasões, neste caso, infelizmente comandadas pelo crime organizado. Foi o que aconteceu no Cine Marrocos

6) que esses grupos que, neste caso, fazem invasões e não ocupações, não raramente o fazem em prédios públicos municipais, com uso definido e projetos em andamento, para fazer provocação política, evidenciando a vezes sua manipulação política. Que todos os prédios municipais em esta situação tiveram pedido de reintegração feito pela prefeitura.

7) que estes grupos têm um papel nefasto pois criam confusão, atrapalham os movimentos legítimos, e ajudam a difundir no grande público a ideia de criminalização dos movimentos, processo de manipulação da informação de que a Folha mostrou hoje fazer parte.

8) enfim, que os movimentos têm grande importância na construção da política habitacional até mesmo para ajudar, com seu diálogo e suas propostas, o poder público a fazer a correta diferenciação entre uns e outros.

Além disso que está acima, e que falei, o que os títulos da Folha e do UOL insinuam é pura ilação.

Aproveitando, informo também aos arquitetos que o que disse em relação aos projetos de HIS é que a categoria deve assumir o desafio de pensar qual a correta solução da equação entre, de um lado, E projetos ruins e baratos decorrentes da conjunção "vontade política de quantidade x velocidade x necessidade real de produzir em massa para atender o déficit gigantesco x busca de lucro das construtora" e, de outro lado, projetos vistosos que dão capa de revista mas são caros demais para a política pública e para satisfazer minimamente essas condicionantes listadas, e não raramente geram excessiva gentrificação. E disse, aliás, que infelizmente a classe dos arquitetos não assumiu essa discussão em suas entidades representativas.

É isso.