A VOLTA DO CONSERVADORISMO ESTÚPIDO, OU COMO FAZER POLÍTICA NA BASE DO LATIDO. Uma análise da conjuntura PARTE 1

Os acontecimentos recentes exigem uma análise cuidadosa. Como se trata de um processo complexo, e confuso, é bom separar um pouco as coisas. Como disse um histórico militante da esquerda, Alípio Freire, nunca foi tão importante defender o mandato de Dilma, mas ao mesmo tempo nunca foi tão difícil defender algumas de suas políticas. Ele tem toda razão, a polarização política promovida pelo PSDB – e eles estão certos, é seu papel fazer a disputa política que lhes cabe, aproveitando-se das fragilidades do governo – leva a uma situação desconfortável: se defendermos o mandato democrático, se nos opusermos ao caráter reacionário das manifestações, somos imediatamente tachados de “pró-dilmistas”, “pró-petistas” ou até de “petralhas”. Mas são coisas bem diferentes. Atacar a reação conservadora em nome de um processo de democratização e defender a vitória de um governo mais à esquerda do que o modelo tucano é uma coisa, que não obriga a dar um cheque em branco ao governo e muito menos a algumas de suas práticas. Porém, ao atacá-lo, deve-se situar com cuidado os avanços e os problemas, sem deixar cair na versão simplista e burra que o tucanato e a mídia querem construir, de que “é tudo corrupto e ladrão” ou que vivemos uma crise sem precedentes. Nem um, nem outro. Começo esta análise de conjuntura com um primeiro texto, atacando a reação conservadora. Continuarei o mais brevemente possível com a segunda parte, intitulada “O lulismo bateu no teto”.

1. A marca das manifestações do dia 15 foi, sim, a apologia à ditadura e ao fascismo, e não são camisetas caras da seleção que disfarçarão essa triste constatação.

- “Ditadura Já”

- “Pela intervenção militar”

- “Não à venezuelização do Brasil”

- “Nossa bandeira, jamais será vermelha”

- “Brasil não será uma nova Cuba” (mesma faixa que uma usada na marcha de 64)

- “Impeachment Já, fora Dilma”

- “Fora Lula!” (fora de onde mesmo? É para mandar para Guantanamo?)

- “Feminicídio sim, fominicídio não!” (hã? Se alguém entendeu, me explique)

Não bastassem estas palavras de ordem, onipresentes em todos os protestos pelo país, tivemos também direito a atos explícitos de incitação ao ódio e à intolerância, ou ainda de estímulo – criminoso diga-se – à volta à ditadura: em Brasília, levou-se ao carro de som, aclamado como herói, um ex-policial do DOPS, o órgão repressor da ditadura, porão das torturas mais ignóbeis. Disse publicamente que não se arrependia de nada, que se pudesse “metralharia a todos esses delinquentes”. Em São Paulo, um líder do Movimento Brasil Livre, loiro e malhado de academia, incitou ao microfone a execração pública de dois jovens repórteres da Carta Capital que faziam seu trabalho em cima do caminhão de som, provavelmente autorizados por suas credenciais de jornalistas por esse mesmo sujeito que, em ato “heroico”, chamou-os a falar no microfone xingando-os de covardes e comunistas por não aceitarem o convite (veja aqui). Tiveram que escoltá-los até a saída, por medo de violência. Duvido que se importassem com os dois jovens repórteres. É que se ocorresse um linchamento (do que certamente essa turba seria capaz), isso os botaria na prisão, uma vez que a incitação ao ódio coletivo fora devidamente gravada. Acham exagero eu dizer que seriam capazes de linchar? Pois foi o que tentaram fazer no Rio, contra um pobre coitado visivelmente desequilibrado que achou por bem dançar com uma camiseta vermelha em meio à multidão. Foi “salvo” pela PM, quando já recebia pancadas. Sabe-se lá para onde foi.

A coisa que mais me entristece é ver uma legião de incautos que achou por bem ir manifestar acreditando fazer um ato cidadão (talvez pelo gesto cívico de usar a camiseta amarela da corrupta CBF), tecer os seguintes argumentos justificadores: “chega de mimimi, não se pode generalizar, algumas palavras de ordem pela ditadura ou o impeachment não representavam a todos, a maioria estava lá contra a corrupção e contra tudo que está ai”. Não adianta querer tergiversar: essas foram as palavras de ordem gritadas e repetidas pela multidão sim, que saltava alegremente repetindo “quem não salta é comunista”. Está mais do que gravado, multiplicado ao infinito para quem quiser ver nas mídias sociais. Imagens que dão enjoo. Não há nenhuma generalização: manifestações são atos de massa, e o que elas transitem para a sociedade são as palavras de ordem que seus líderes bradam. Se eu for a uma manifestação e o sujeito em cima do carro de som começar a gritar “Viva Hitler”, me desculpem, mas eu me retiro. Se fosse a uma passeata contra a alta no preço do pãozinho, por exemplo, e me deparasse slogans racistas, homofóbicos ou machistas, eu simplesmente sairia. Pela simples razão de que não gostaria que me identificassem com esse tipo de ideias. Mesmo que estivesse realmente irritado com o preço do pãozinho.

Então, cara leitora, caro leitor, se você foi e fingiu que não viu, se você foi para reclamar de outra coisa e acha insignificante que a marca do seu protesto seja algo como a volta à ditadura, se você foi e por diversão pulou para gritar contra o comunismo, se você achou normal aplaudir torturadores, não é o caso agora de tergiversar. Enquanto essa tal “parte boa” dos movimentos do dia 15, da qual você deve fazer parte, não se manifestar posicionando-se claramente contra atos criminosos e de incitação à violência, enquanto não se descolarem dessa banda podre da sociedade brasileira de forma contundente, então, me desculpe, VOCÊ FAZ PARTE DISSO. Urge que os oposicionistas não-golpistas mostrem que têm força para mobilizar-se por iniciativa própria, e não a partir de chamamentos da mídia ou dos setores ultra-direitistas. Só assim essa oposição ganhará a consistência que merece, inclusive para protestar muito justamente contra a corrupção.

A esquerda está se articulando para isso, chamando uma frente para cobrar ações contra a corrupção endêmica – sobre a qual o governo sim, mas também TODOS os políticos têm responsabilidade – e pressionar pela reforma política. Se eleitores do Aécio ou outros cidadãos que se dizem “de direita” – não os truculentos cães da extrema direita, mas aqueles que prezam pela democracia – querem opor-se a isso também, que ótimo. Mas que o façam de maniera cívica e democrática. Sem submeter-se à palavras de ordem dos fascistoides de plantão, sem seguir cegamente a argumentação cuidadosamente montada pela mídia para “simplificar” as coisas e aplainar tudo como se fosse uma questão de ser pró ou contra o executivo.

Devemos dar o desconto de que essa aproximação com a extrema direita não é só fruto de um conservadorismo arraigado na cultura das nossas elites. É decorrente também da forma com que o PSDB orientou suas duas últimas campanhas eleitorais. Sejamos claros: com o PT tendo feito, com algumas variações, a política desenvolvimentista de centro que talvez FHC sonhara fazer, porém com mais competência para atender as questões sociais, o PSDB sobrou sem muitas alternativas programáticas. Frente a hegemonia que o PT ganhou nos últimos anos, e o sucesso internacionalmente festejado do lulismo, o tucanato não soube construir novas lideranças. Por disputas internas insolúveis, recolheu-se sempre ao anacrônico embate entre seus velhos líderes: Alckmin, Serra e Aécio, que se revezam no poder sem dar espaço a novas caras. Sem conseguir tampouco construir um discurso verdadeiramente alternativo, Serra inaugurou na campanha de 2010 uma perigosa aproximação com a extrema direita. Que se fortaleceu na última campanha, graças ao incentivo desastroso de alguns líderes tucanos “linha dura”, como Aloysio Nunes, Arthur Virgílio ou José Aníbal. Ao ponto de incomodar as lideranças mais democráticas do partido, como Xico Graziano (clique aqui). Então, se agora a “massa” eleitoral do tucanato se confunde sem muita preocupação ao que há de mais retrógrado na política brasileira, é também um pouco culpa da maneira como os tucanos (des)encaminharam sua ação política nos últimos anos.

Porém, para esta massa, é importante relembrar que quem se omite diante de monstruosidades como essas, ou mesmo faz parte delas, fingindo-se de desinteressado, está ajudando a construí-la. Foi assim com a classe média silenciosa que fechou olhos interesseiros para o crescimento do antissemitismo na Alemanha nazista. Foi assim com a classe média silenciosa que, na ditadura, denunciava seus vizinhos para a morte, por medo do “comunismo”. Então, se você não concorda com isso e esteve lá apesar dos fascistas, não adianta vociferar contra os que, como eu, indignam-se com seu gesto. Urge, isto sim, que organize um movimento verdadeiramente oposicionista, nos limites da democracia e, sobretudo, com propostas claras. Sim, propostas claras, pois, afinal, o que sobra disso tudo é: o que, afinal, exceto a volta da ditadura e a saída antidemocrática de uma presidente eleita pela maioria, estava-se pleiteando? O fim da corrupção, sem sequer mencionar-se nos protestos a responsabilidade gigantesca do legislativo sobre essa questão? É preciso qualificar a discussão, com urgência.

2. O direitismo burro, incitação ao ódio e manipulação da mídia

Pois “fora comunismo”, “não queremos Venezuela no Brasil” são propostas tão estapafúrdias quanto vergonhosas por escancararem a ignorância, o desconhecimento absoluto da história, a falta crônica de leitura, o simplismo intelectual de quem as faz. Bordões como “abaixo a corrupção”, feitos assim de forma genérica, sem discernimento sobre de quem se está falando, mostram apenas a capacidade subserviente de aceitar as informações deturpadas e manipuladas de mídias como a Globo, empresa que derrama sua ética e sua moral, mas que usou onze empresas em paraísos fiscais para sonegar do povo brasileiro nada menos do que 358 milhões de Reais em impostos. Chamar o Brasil de Venezuela ou Cuba por por em prática politicas sociais como o “fome zero” que sequer arranham as estruturas do capitalismo nacional é mostrar-se enormemente ignorante da história. O que diria essa gente se soubesse que, para construir esse capitalismo que tanto defendem e admiram, países como a Inglaterra ou a França puseram em prática, desde os anos 40, políticas de estatização e nacionalização que deixariam no chinelo qualquer Hugo Chavez?

Então, caro leitor deste blog, se você ainda acha que é correto e legítimo manifestar-se com essa gente, peço-lhe apenas que pare sua leitura por aqui. Pois chega de cordialidade: há momentos em que as opções políticas são sim assumidamente diferentes. Não há nenhuma razão em ficar lendo coisas com as quais não se concorda. Espero assim evitar as reações como sempre agressivas dos que se sentem incomodados, e estranhamente vestem a carapuça à qualquer crítica, ofendem-se a qualquer uso da palavra coxinha, contra-atacando com o argumento fácil de que “não é um fla x flu” e que “de nada adianta querer jogar uns contra os outros”.

Cansei de ouvir na minha vida gente me chamando de “esquerdista”, “petista vermelho” (quando aos 15 anos fazia campanha pelo Lula para Governador), e agora vejo os mesmos indignando-se por serem chamadas de coxinhas. Não, isso não é incitar à violência, nem jogar uns contra os outros. Incitar à violência e ao ódio é o que a Globo, UOL e a Veja fizeram, sistematicamente e orquestradamente no último ano, desde antes da eleição, colocando gente como um Rodrigo Constantino, um Reynaldo Azevedo ou comparsas incitando seus leitores cotidianamente a alimentar o ódio a tudo que pudesse parecer menos boçal e direitista do que aquilo que os limitados intelectos destes senhores entendem como “certo”.

É Constantino, por exemplo, o autor de pérolas do tipo: “Paulo Freire, o patrono da educação brasileira deve ser colocado em seu devido lugar: o lixo da história”, em texto em que demoniza o “marxismo” que teria tomado conta da educação no Brasil. Sem comentários, coisa dos tempos da Guerra-Fria, completamente fora de lugar, cujo único intuito é, sim, exacerbar o ódio e a tensão social. Explica porque alguns aparecem na manifestação com a faixa “chega de doutrinação marxista, basta de Paulo Freire”. Devem ter lido algum dia aquela famosa edição da Veja, de 28 de setembro de 2011, em que a progressista revista propunha “o fim do ensino de filosofia e de sociologia nas três séries do ensino médio em todas as escolas do Brasil”. Depois vem a turma dizer que uma única frase do Lula sobre os militantes do MST, infeliz é verdade, no meio dessa azeitada máquina de fomentar o ódio social, é a causadora do tensionamento atual. Tenham a santa paciência. Quem fomenta o ódio é uma Raquel Sherazade, cujas pregações ensandecidas podem ser vistas com uma simples pesquisa no YouTube. Coisa de gente doente.

A manipulação descarada da mídia perdeu qualquer discrição no famigerado dia 15: A Globo, além de usar uma concessão pública para chamar, orientar e incitar ao longo do dia as pessoas a ir a um ato político (o que fere a lei e as prerrogativas da concessão, leia aqui a respeito), simplesmente inventou, ao vivo, o número de participantes dos atos, de maneira grotesca: enquanto a DataFolha falou em 210 mil pessoas na Paulista, a Globo News escancarou a tarde toda: “mais de um milhão de pessoas na Paulista”. Se não bastasse o absurdo da incoerência dos dados no mesmo dia, torna-se ainda mais grave quando comparado ao tratamento dado à manifestação de sexta-feira na Paulista, esta pró-governo. O UOL publicou na ocasião a seguinte manchete: “Estimativas variam de 28 mil a 120 mil pessoas em manifestações pelo país". Fora o fato de omitir ao leitor que se tratava de manifestações a favor do governo (e que evidentemente não receberam o mesmo empenho da Globo para incentivar a participação), o número chama atenção pela inexpressividade: 28 mil pessoas como estimativa mínima, não na Paulista, mas...em todo o país!! Então vejamos as duas fotos postadas por uma colega nas redes sociais, a primeira de sexta dia 13 (a esq.), a segunda do domingo dia 15 (a direita). A mídia realmente acha que seus telespectadores e leitores são....trouxas. E, na verdade, parece mesmo que uma boa parte o é.

Como bem disse um colega arquiteto, para caber 1 milhão de pessoas na paulista, que tem 40 por 2650 metros, teríamos que ter mais de 9 pessoas por m2 (a maior lotação do metrô, aquela que você nem consegue pôr o pé no chão), com calçadas e todas as faixas tomadas desde a 13 de maio até a consolação, sem descontar a ciclofaixa em obra, bancos, canteiros, bancas de jornal. Não fui à manifestação, evidentemente, mas as imagens de todas as redes de TV eram claras. Nem de perto se chegava a um vagão lotado do metrô.

E, antes que os mesmos de sempre me venham com o questionamento padrão, de que como então, se anuncia cerca de 2 milhões de pessoas na parada gay, vale lembrar: trata-se neste caso de passeatas de fluxo, em que as pessoas andam de um lugar ao outro, ao contrário da do dia 15. Aliás, como foi a da sexta-feira, como se vê na primeira foto, que encheu em fluxo contínuo uma faixa das faixas de trânsito, desde a Praça Roosevelt. em baixo da Consolação, até o Paraíso, na extremidade da Paulista.

Não estou aqui querendo minimizar o fato de que as manifestações do dia 15 foram sim razoavelmente significativas, em especial no Sudeste e Sul, redutos aecistas nas últimas eleições. Estou querendo mostrar a que ponto chega a manipulação insidiosa da grande mídia. Mas podemos falar de números, se quiserem. Até mesmo considerar, como amostra de boa vontade, o número de um milhão de manifestantes no país todo. Aécio Neves teve, na última eleição, 51 milhões de votos, contra 54,5 de Dilma Rousseff e, portanto perdeu as eleições. É absolutamente aceitável que parte de seu eleitorado, especialmente a mais direitista, se veja insatisfeita com o governo que não elegeu. Se houve mesmo um milhão de pessoas nas ruas, o que eu duvido, trata-se de 0,5% do eleitorado do Aécio, com alguns prováveis insatisfeitos eleitores de outros partidos.

É um movimento significativo, mas que, como visto acima, e apesar da cobertura deturpada, não impactou muito mais do que uma marcha de apoio ao governo, chamada às pressas e ainda sob forte chuva. Não fosse, evidentemente, o tratamento absolutamente diferenciado dado pela mídia a uma e à outra. O jornalismo no Brasil nunca se encontrou em situação de tamanho descrédito.

3. As manifestações foram sim compostas pelo eleitorado do Aécio e têm um caráter antidemocrático de “terceiro turno”.

 


Mas as fotos não enganam, como no caso desta acima, amplamente divulgada nas redes sociais, e mostram como, claramente, as manifestações do dia 15 foram animadas, com uma ou outra exceção, por uma elite branca e rica. Não foram manifestações populares, mas dos 30 % que compõe a elite do país. Também não enganam os gráficos que apontam os bairros onde se concentraram os protestos e panelaços: os ditos bairros “nobres”, aqueles “que funcionam” nas cidades, onde há tudo do que se precisa e até um pouco mais. Os bairros onde Aécio Neves teve indiscutível maioria. E não adianta dizer que os protestos se deram em todo o Brasil como prova de sua força nacional, pois bairros “nobres” e ricos existem em toda e qualquer cidade, neste nosso modelo de apartheid urbano à Brasileira. Os protestos, onde for que tenham ocorrido, sempre se deram nesses territórios do privilégio das nossas cidades. Foi nacional sim, mas reservado às elites de cada uma das cidades do país.

É claro que a mídia se esforçou para registrar e entrevistar aqui ou ali um manifestante negro que serviu de “prova” da democracia dos atos. Sempre há aqueles que indignados dizem: “eu fui, e não votei no Aécio”. Ok, mas são uma minoria insignificante. Em uma notícia que ficou bem pouco na manchete de seu portal na internet (UOL), o DataFolha confirmou: 82% dos presentes na Av. Paulista eram eleitores do Aécio (e olhe que se o instituto mantiver sua tradição, deve ter ajeitado os números para baixo, para não dar tão na cara). Engraçado ouvir os depoimentos dos que vivem no exílio injusto das periferias, longe dos bairros “nobres” onde se deram as manifestações: se não fosse pela televisão (e a versão montada pela Globo, com direito a chamadas emergenciais de plantão, aludindo a uma profunda crise institucional), sequer teriam sabido o que ocorreu, nesse fatídico domingo em que o Brasil viu a vergonha da reedição da Marcha da Família com Deus pela Liberdade.

Neste ponto entra então uma comparação interessante com países em que a democracia está já há tempos consolidada. Na França, por exemplo, apesar das tensões, do crescimento do partido da extrema-direita, se um presidente é eleito, mas manifestações grita-se contra o governo e suas medidas, mas nunca para a queda do mesmo. Respeita-se o resultado das urnas, mesmo que se tenha que engolir cinco anos de um lunático como o Sarkozy (metido em mais escândalos de corrupção do que qualquer especialista no assunto aqui no Brasil), ou aceitar, poucos meses depois do sufrágio, que o presidente eleito Hollande seja, assim como temos o nosso por aqui, um autêntico picolé de chuchu, que de socialista não tem nada.

Ainda assim, o respeito ao processo eleitoral é sagrado, pois sabe-se que questioná-lo pode levar a caminhos muito piores. Aqui, parece que a cultura democrática ainda está bastante frágil. Talvez porque os perdedores nos últimos pleitos presidenciais sejam justamente aqueles mais acostumados a obter tudo que querem pela força do dinheiro e da carteirada. Dentre as elites patrimonialistas do nosso país, em que por 500 anos o legal e o ilegal foram e são reiteradamente manipulados para satisfazer os seus interesses, em que tudo pode ser resolvido – da carteira de habilitação suspensa à aprovação de seu empreendimento imobiliário – na base da caixinha e da demonstração de riqueza e poder, a aceitação de 4 derrotas seguidas para gente que pretende defender o lado dos pobres – mesmo que na prática nem o faça tanto assim – é simplesmente insuportável. Tudo bem, não vamos dizer que todos que estavam na rua eram a favor da volta dos militares. Mas mesmo falar em impeachment quando, na fala dos juristas mais direitistas do país, não há absolutamente nenhuma base jurídica para isso, é sim fazer uma afronta à democracia. É coisa de mau-perdedor mimado. É a vontade de criar um “terceiro turno” na base do grito. Da latida, para dizer bem a verdade.

A grande diferença entre este 15 de março e os movimentos de junho de 2013, diga-se, é que aqueles partiram, esses sim, de uma mobilização espontânea de massas, e popular, liderada por um movimento de jovens declaradamente de esquerda, o MPL, e fortemente combatida pelo establishment, com uso violento da polícia. Só depois que a classe média de direita aderiu, com o estímulo da Globo, levando às ruas seu verde-amarelo, é que o movimento, aliás, esvaziou-se, com a imediata retirada dos grupos originais. É por isso que as passeatas do dia 15, que nada de popular ou de esquerda tiveram, exceto um genérico grito contra a corrupção, que mais pareceu uma desculpa útil para esconder o verdadeiro motivo dos maus perdedores, não tinha muito como dar realmente certo (o barulho que a Globo fez sobre o episódio foi, como vimos, exageradamente superior à sua real dimensão).

No dia seguinte à manifestação, os mesmos comentaristas de sempre imediatamente atacaram a reação de Dilma: falta de humildade, diz Josias de Souza, insistência nos erros, para Fernando Rodrigues. O que esse pessoal quer? Que Dilma capitule à vontade específica do eleitorado que não votou nela, vista um terno de Aécio e saia por ai fazendo o governo que ele faria? Seria como, então, dizer aos brasileiros que na verdade Aécio deveria ter ganho e que ela está errada. Na base do berro, da truculência, vamos forçar para que uma presidente eleita caia. Então tá: fora Dilma, saia do seu posto pela pressão de 0,5% de eleitores, quase todos de Aécio!

E o respeito aos milhões que votaram nela? Pode até ser que essa massa eleitoral ainda esteja um tanto silenciosa (embora a marcha de sexta em SP tenha mostrado o que pode vir), mas ela está ai. Se a tática for mesmo essa de chamar o povo para a rua (como fez a Globo ao longo da semana), corremos um sério risco de tensionamento mais grave. Pois, nessa competição, será um tsunami humano na hora em que parte dos outros 54,5 milhões que votaram em Dilma resolverem ir à rua, em contraponto a manifestações que cada vez mais parecem querer desfazer-lhes a vitória que alcançaram nas urnas.

O mais irônico, ou que mostra o quanto esse pessoal está desnorteado, é que, infelizmente, a presidente vem sim fazendo o que eles apregoam: arrocho econômico, ajuste fiscal, medidas impopulares mas que favorecem a elite econômica, banqueiros no comando da economia. O que mais querem? Está mais do que na hora de o governo perceber que a tática de recuar cada vez mais pelo lado da direita só está botando combustível para que esta se ache no direito de querer mais. O céu não tem limites, o objetivo final é sua queda. Tomara que Dilma, a partir de tão deprimente situação, perceba que é mais do que hora de atender àqueles que de fato a elegeram, abandonar o receituário conservador e parar de fazer concessões. Porém, quem pode dizer quais as condições políticas para que ela o faça, ao invés de tentar amenizar a crise e voltar para um trilho mais tranquilo, como ela vem tentando fazer? Difícil saber, para quem está de fora, tais os interesses em jogo e o tamanho do que está em jogo, como veremos mais à frente.

Porém, questionar e indignar-se contra as palavras de ordem das manifestações não pode esconder o fato de que o governo está também pagando um preço por coisas que fez. O modelo do “lulismo” aparentemente se esgotou, o que vem abrindo uma fissura pela qual a extrema direita – e o tucanato, atento à oportunidade – tenta passar. É sobre isso que falaremos na continuação deste texto, “O Lulismo bateu no teto”. Até lá.