Gestão democrática e participativa: um caminho para cidades socialmente justas?

A definitiva ascensão do Partido dos Trabalhadores (e de outros partidos de esquerda) ao Poder Executivo, fenômeno que já vem ocorrendo há alguns anos em muitos municípios, e que se completou em 2003 com a vitória de Lula nas eleições presidenciais, trouxe à tona a esperança de que as nossas metrópoles iriam, enfim, beneficiar-se de gestões democráticas e efetivamente participativas, capazes de corrigir os dramáticos níveis de desigualdade, exclusão e segregação espacial que as caracterizam.

Entretanto, mais de uma década depois das primeiras vitórias em Porto Alegre, Fortaleza e São Paulo, é triste constatar que se por um lado houve com certeza muitos progressos, especialmente   nos   municípios   que   como   Porto   Alegre   mantiveram   uma   gestão continuada, por outro lado os níveis de pobreza e de exclusão sócio-espacial, que se revertem em um cenário cada vez mais visível de fratura social e de violência urbana, ainda  são  lamentavelmente  altos  e  incompatíveis  com  uma  economia  do  porte  da brasileira.

De  maneira  geral,  o  direito  à  cidade  socialmente  justa  ainda  é  uma  reivindicação premente:  as  grandes  metrópoles  brasileiras  têm  em  média  cerca  de  20%  de  sua população morando em favelas (chegando a 40% em Recife), e cerca de 50% excluída do chamado mercado formal. O índices de população favelada não diminuíram, mas ao contrário continuaram crescendo, assim como as periferias pobres das grandes cidades. Em quase todas elas, as áreas de proteção ambiental estão tomadas por ocupações com alta densidade habitacional, como ocorre em São Paulo, onde cerca de 1,2 milhão de pessoas  moram  em  torno  das  represas  Billings  e  Guarapiranga,  em  plena  área  de proteção  aos  mananciais.  A  porcentagem  de  domicílios  sem  saneamento  ainda  é altíssima, e o transporte público exige dos trabalhadores mais pobres horas e horas de paciência. Os centros urbanos brasileiros, com seus espaços públicos invariavelmente ocupados pelo comércio informal, estão se esvaziando, e sobram imóveis desocupados, que não cumprem a função social da propriedade urbana [1] – embora seja esta uma exigência constitucional – enquanto milhares de sem-teto constituem uma demanda por habitação que não consegue ser atendida nem pelo Estado e muito menos pelo mercado imobiliário. Enchentes e desmoronamentos são ainda comuns, e a irregularidade fundiária na cidade informal parece ser insolúvel. Em suma, pode-se dizer que, neste início de século, as nossas cidades apresentam um quadro  social dramático e absolutamente inaceitável.

A pergunta que vem portanto à mente é se de alguma forma as experiências de gestão mais democrática e participativa implementadas na última década e meia não deveriam ter gerado novas formas de planejamento urbano mais capazes de pelo menos começar, nessas cidades, a reverter esse quadro de intensa exclusão social. Processos de gestão muito propalados, como por exemplo os Orçamentos Participativos, ou a existência de novas leis, como o Estatuto da Cidade, não deveriam ter surtido um efeito suficiente para que os índices gerais da situação urbana brasileira começassem a mostrar uma inflexão positiva? Para que a sensação de insegurança urbana tivesse diminuído? Para que a legião de sem-tetos se reduzisse, baixando o déficit de cerca de 5 milhões de moradias? A resposta é sim e não.

"Sim" porque indubitavelmente as experiências localizadas de gestões de esquerda mais duradouras,  como  em  Porto  Alegre  ou  Belém,  estão  produzindo  uma  melhoria  da qualidade de vida urbana e dos índices de exclusão, e uma intensificação dos processos participativos de gestão da cidade, visíveis à olho nu. E "não" porque os obstáculos que ainda existem são gigantescos, e todos os esforços  feitos remam isoladamente contra uma violenta maré contrária. Muitos elementos contribuem para tornar essa constatação negativa extremamente complexa em suas causas. É sobre eles, e sobre as alternativas de planejamento urbano que se colocam, que tentaremos refletir brevemente neste artigo.

O primeiro elemento a ser considerado é que o drama urbano brasileiro não data de ontem, mas tem suas origens nos 500 anos de formação de uma sociedade bipartida, e por isso não há de ser resolvido senão em um período de tempo bastante longo. Como  já apontou a urbanista Ermínia Maricato[2], as cidades refletem e reproduzem as dinâmicas sociais historicamente desiguais que pautaram a (não) formação[3] da nação brasileira. São a expressão da hegemonia capitalista de uma sociedade de elite. E, nesse contexto, o Estado, historicamente associado aos interesses das nossas classes dominantes, não só nada fez para reverter essa situação como ajudou a consolidá-la. Vale lembrar que o período mais intenso da nossa industrialização, a partir da década de 50, foi gerado graças a aliança entre as burguesias "modernas" nacionais – interessados em diversificar a  economia agrário-exportadora – e os interesses de  expansão  da economia-mundo capitalista no pós-guerra. A transferência para o Brasil de um parque industrial já montado – e geralmente obsoleto em seu país de origem – só seria interessante para as empresas multinacionais  se  elas  pudessem  exercer  aqui  a  exploração  de  mão-de-obra  que  o Welfare State limitava nas nações industrializadas. Por isso, a não-provisão por parte do Estado  de  uma  infra-estrutura  habitacional  e  urbana  compatível  com  o  acelerado crescimento  das  metrópoles,  provocado  pela  massa  de  imigrantes  atraídos  pela industrialização,   está   diretamente   ligada   à   manutenção   de   baixos   níveis   de assalariamento e de um significativo exército industrial de reserva, barateando os custos da  mão-de-obra.  Por  isso,  assim  como  alguns  pensadores  da  formação  econômica brasileira se referem à uma "industrialização com baixos salários", é possível falar de uma "urbanização com baixos salários" (Maricato, 2000), que gerou cidades estruturalmente desiguais  com  periferias  superpopulosas  e  pobres,  quase  totalmente  desprovidas  da presença  do  Estado  (exceto,  evidentemente,  do  poder  de  polícia,  cuja  função  de resguardo da segurança pública se confunde, como já lembrou Hélio Luz[4], com a de manutenção  da  população  pobre  nos  guetos  em  que  as  periferias  e  as  favelas  se transformaram).

O exemplo de São Miguel Paulista, na periferia de São Paulo, é exemplar. A região duplicou quase instantaneamente sua população – sem receber qualquer investimento público de urbanização –  quando dois empresários de destaque na década de 30, cujos descendentes ainda hoje lideram o empresariado nacional, resolveram trazer desmontada dos EUA uma indústria completa de Rayon, uma fibra sintética moderníssima no Brasil porém  já  obsoleta  em  seu  país  de  origem.  Enquanto  a  joint-venture  permitiu  aos americanos um inesperado novo ciclo de vida para uma planta industrial já obsoleta, ela também contribuiu para a rápida e "moderna" industrialização do país, implantando em São Miguel a Nitroquímica, fábrica constantemente visada pelas más condições de saúde de  seus  trabalhadores,  e  que  só  recentemente  foi  desativada.  É  dessa  época  que remonta, o que não é uma coincidência, a formação de favelas como a do Jd. Pantanal, hoje espalhadas na região.

Assim, fica claro que a dramática situação das nossas cidades está estruturalmente ligada à desigualdade estrutural da nossa economia. Quando, na década de 90, é implantado no Brasil o modelo neoliberal hegemônico por sobre essa matriz social arcaica que sequer havia superado as relações de desigualdade e dominação herdadas do Brasil colonial, a exclusão sócio-espacial nas cidades só fez acentuar-se. Evidentemente, por mais que governos  democráticos  e  populares  começassem  a  tomar  a  frente  de  algumas administrações  municipais,  sua  ação  não  poderia  ser  muito  efetiva  na  melhoria  das condições urbanas uma vez que a política macro-econômica da era FHC, pautada pelos preceitos neoliberais do Consenso de Washington, ao promover a abertura do mercado, a desregulação econômica e o desmonte do Estado só exacerbava a concentração de renda, a desindustrialização, o desemprego e a recessão. Ou seja, fica evidente o mais efetivo obstáculo para o sucesso de qualquer política urbanística no Brasil: por mais que se criem mecanismos participativos de gestão, por mais que se implementem melhorias habitacionais e urbanas, um verdadeiro avanço só ocorrerá no dia em que a população puder ter emprego e renda. Fora isso, todo o resto é paliativo. Como bem colocou Caco Barcellos[5], nenhuma política pode ser eficaz (falando, no caso, da violência no Rio de Janeiro), se não se começar por um salário digno.

Além disso, as gestões de esquerda se defrontavam – e ainda se defrontam – com outra enorme  dificuldade:  a  tradição,  em  especial  no  campo  do  planejamento  urbano,  de procedimentos centralizadores, autoritários e ineficazes de um urbanismo funcionalista e burocrático que havia se consolidado durante os anos da ditadura militar. A herança do planejamento modernista inspirado em modelos importados totalmente descolados da nossa  realidade,  fortemente  enraizado  nas  escolas  de  arquitetura  e  urbanismo,  e  a consolidação de um aparato estatal construído no intuito de fortalecer a hegemonia das elites nas cidades e não de democratizar e universalizar as políticas públicas, geraram máquinas   governamentais   extremamente   fragmentadas,   compartimentadas   pelas disputas  internas  de  poder,  abaladas  pela  corrupção  e  o  clientelismo,  distantes  da população e de suas reivindicações, e praticamente ineficazes para promover alguma transformação social mais significativa nas cidades. Some-se a isso o fato de que a pouca maturidade do eleitorado brasileiro, ainda impactado por 20 anos de falta de democracia, levou em alguns casos à recondução ao poder, após curtas gestões da esquerda, de políticos identificados com os setores mais atrasados, arcaicos e clientelistas de nossas elites, e que em pouco tempo desmantelavam todo e qualquer avanço conseguido pela gestão anterior nos procedimentos burocrático-administrativos e na democratização da gestão pública.  Foi o que aconteceu por exemplo em São Paulo, quando as significativas melhorias aportadas pela gestão petista de Luiza Erundina na área da habitação, dos transportes, da educação e da saúde foram violentamente interrompidas e desmontadas pelos oito anos da gestão Maluf-Pitta.

A ineficácia do planejamento urbano funcionalista se evidencia em inúmeras cidades, pela produção  de  "Planos  Diretores"  genéricos,  tecnicistas  e  centralizadores,  feitos  em gabinetes bem longe da realidade urbana, voltados mais para a retórica eleitoral do que para serem efetivamente aplicados, e que quase sempre acabaram mofando em alguma gaveta das prefeituras[6]. Ermínia Maricato já elencou, em outras ocasiões, os principais problemas dessa metodologia tradicional de planejamento urbano: o descasamento entre o conteúdo regulatório e jurídico dos planos urbanísticos mais tradicionais e a realidade da gestão operacional das dinâmicas urbanas;  a inversão de prioridades na alocação dos investimentos públicos, geralmente definidos segundo os interesses dos setores privados, o  descontrole  sobre  os  processos  de  fiscalização  do  aparato  regulatório  criado  pelo próprio plano, dando margem à corrupção generalizada; a absoluta incapacidade dos planos em atingir a cidade informal; e um jargão tecnocrático e arrogante que intensifica o distanciamento do planejador da população, em especial da de baixa renda.

Face  à  crítica  realidade  urbana  brasileira,  não  há  dúvidas  que  os  Planos  Diretores tradicionais pareciam (e parecem), com seu amontoado de generalidades tecnicistas, incapazes  de  atingir  os  reais  problemas  que  assolam  nossas  cidades,  em  essência questões muito mais básicas do que se poderia imaginar. Senão uma solução, mas ao menos  uma  forte  inflexão  nesse  quadro  urbano  crítico  seria  possível  se  os  planos urbanísticos  se  debruçassem  prioritariamente  tão  somente  sobre  quatro   questões fundamentais: habitação  para todos, transporte público de qualidade, saneamento ambiental, e melhoria da qualidade  urbana,  em especial na cidade informal. Todo o resto, como diretrizes genéricas que aparecem nos planos diretores que ainda vêm sendo produzidos, e que vão desde propostas de ciclovias a novos métodos cada vez mais complexos – e inaplicáveis – de regulação urbanística para a cidade formal, todo o resto é secundário face à urgência dessas quatro questões principais. Um plano diretor deveria, portanto, apenas priorizar radicalmente políticas públicas nesse sentido, e nada mais. Não é à toa, portanto, que o Ministério das Cidades estruturou suas secretarias nacionais justamente em torno dessas quatro questões.

É importante notar que a criação, pela primeira vez na história do país, de um Ministério das Cidades – que traz esperanças promissoras de transformações na forma de se tratar a questão urbana no Brasil –  foi resultado de uma longa luta encampada não só pelo PT mas por amplos setores da sociedade civil. Uma luta que se iniciou ainda na década de 70, desde quando a população excluída das cidades passou a organizar-se politicamente de forma mais sistematizada. Os movimentos populares de moradia, conjuntamente com entidades profissionais, ONGs e setores da universidade, consolidaram a mobilização pela  reforma  urbana,  que  teve  papel  fundamental  para  a  inserção  de  instrumentos urbanísticos  mais  democráticos  na  Constituição  de  1988.  Treze  anos  depois,  a manutenção  de  uma  contínua  pressão  pela  regulamentação  desses  instrumentos culminou com a aprovação pelo Congresso Nacional do Estatuto da Cidade, que introduz ou consolida ferramentas técnico-jurídicas capazes de dar ao Estado maior poder no controle da especulação imobiliária e na implementação de políticas urbanas com fins sociais, como por exemplo o IPTU Progressivo e as Zonas Especiais de Interesse Social[7].

Entretanto, se por um lado a mobilização pela participação popular na gestão das cidades e a defesa de uma maior presença do Estado na regulação das dinâmicas urbanas ganharam força como alternativas capazes de contrapor-se à inutilidade do planejamento urbano tradicional, por outro lado a avassaladora ideologia da globalização neoliberal trouxe  consigo  teorias  urbanas  "irmãs"  tão  ou  mais  nefastas  do  que  ela.  Se  a "globalização   econômica"   pretendeu   fazer-nos   acreditar,   com   incondicional   apoio midiático, que a abertura do mercado e a desregulação econômica seriam o único, o melhor e o mais rápido caminho para nossa entrada no Primeiro Mundo, as teorias urbanas equivalentes, como a do "Planejamento Estratégico", do "Marketing de Cidades", ou das "Cidades-Globais", pretendem por sua vez que a única saída para as cidades sobreviverem no "novo" contexto globalizado é a da competição entre elas, em uma disputa pela atração dos cobiçados capitais internacionais. Desta forma, além de ter que enfrentar  os  arcaicos   mecanismos   do  planejamento   funcionalista,   com   todos  os obstáculos comentados acima,  os defensores da  reforma  urbana  passaram a  ter de encarar a hegemonia do pensamento urbano neoliberal, que se difundiu de tal forma que até algumas administrações de esquerda caíram na crença de que o "novo" caminho para as cidades seria o da competitividade urbana.

As teorias urbanas neoliberais têm como principal inconveniente o fato de canalizarem significativos fundos públicos, que poderiam ser destinados à políticas mais prementes de saneamento, habitação e transporte nos bairros pobres da periferia, na construção de "centralidades terciárias" supostamente capazes de inserir as cidades no circuitos dos fluxos globais do capital financeiro e de alavancar, por um misterioso "efeito sinérgico", um processo de crescimento econômico que se estendesse além da centralidade em questão, beneficiando a cidade toda. Assim, sob a justificativa de que é "importante" para a cidade tornar-se uma "cidade-global", coalizões são firmadas entre as elites fundiárias e imobiliárias e o Estado, para garantir a destinação dos fundos públicos em vistosas e supérfluas obras nos "distritos de negócios". Assim como em São Paulo surge o badalado centro de negócios da região da avenida Berrini, em todas as grandes cidades brasileiras alguns  centros  escolhidos  pelas  elites  passam  a  receber  significativos  investimentos estatais. Os empresários imobiliários, inclusive, criam uma acirrada competição entre si para assegurar-se o privilégio de ter sua "frente" de ação escolhida como "a" centralidade terciária global. Em São Paulo, apesar dos esforços dos empresários interessados em "ressuscitar" a região central[8], é a região da Berrini e da Marginal Pinheiros que vem ganhando indubitavelmente essa batalha[9]. Em pesquisa recente[10], verificamos que em apenas 3 anos de governo, na passagem das gestões Maluf para Pitta, foram investidos, em um pequeno quadrilátero de cerca de 60 km², um total de 4 bilhões de reais de dinheiro público, em operações destinadas à promover a valorização fundiária da região[11], sempre sob a inquestionável justificativa de que ali se construía a "cidade-global". O discurso da "cidade-global" nunca foi tão útil para enriquecer tão poucos. E recentemente, a disputa travada entre São Paulo e Rio para ser a sede das Olimpíadas mostra que a lógica do planejamento estratégico continua a pleno vapor.

Os investimentos em obras nas periferias, assim como aqueles para a implementação de mecanismos de gestão verdadeiramente democráticos e participativos, voltados para os problemas efetivos da cidade informal, têm portanto agora que competir, infelizmente, com os investimentos destinados à construção dessas "ilhas de Primeiro Mundo". Na verdade, esse fenômeno esconde um problema bem mais profundo: o cenário ditado pela Lei de Responsabilidade Fiscal e pela busca a qualquer preço pelo superávit primário, em um   contexto   cerceado   pelas   regras   macro-econômicas   ditadas   pelo   modelo   da estabilização  monetária  e  pelos  credores  internacionais.  Assim,  a  "governabilidade", mesmo nos governos de esquerda, passa hoje no campo urbanístico pela priorização absoluta a mecanismos de parceria com o setor privado, supostamente "gratuitos" para o Estado, mas que raramente beneficiam – pois não é esse o caráter do setor privado – a cidade periférica informal. Não há dinheiro para investir no setor social nos níveis que a exclusão urbana brasileira demandaria, assim como não há para garantir as obras de infra-estrutura urbana e de provisão habitacional de interesse social. Em compensação, sempre há soluções para novos túneis ou avenidas, supostamente "financiadas" pelo setor privado, em "parcerias" que na verdade acabam custando caro ao setor público[12].

Nesse cenário, embora sejam uma das mais importantes iniciativas de democratização do planejamento  urbano,  por  permitirem  maior  transparência  orçamentária  e  uma  certa participação nas decisões das prioridades dos investimentos públicos, os Orçamentos Participativos ainda estão muito aquém de ser o instrumento que realmente se desejaria que  fossem.  Em  primeiro  lugar,  porque  muitas  vezes  acabam  caindo  nos  vícios  de estruturas de representação que não conseguem partir das escalas locais dos bairros para chegar na escala municipal sem sucumbir às disputas políticas típicas das estruturas piramidais  de  delegação  de  poder.  E  em  segundo  lugar,  porque  as  limitações orçamentárias, no atual quadro financeiro das administrações municipais, é tão restringido pelos  contingenciamentos  diversos  que  na  verdade  sobra  muito  pouco  para  ser efetivamente "decidido" pela população. Ainda assim, são experiências fundamentais, que devem continuar e se aprimorar. Nesse sentido, a cidade de Belém do Pará vem dando um exemplo extremamente positivo. Lá, se ampliou a discussão do orçamento municipal para a discussão da própria cidade, e o fórum original do orçamento participativo se tornou efetivamente o Congresso da Cidade. Além disso, as propostas e experiências de gestão   participativa   foram   e   estão   sendo   incorporadas   às   estruturas   fixas   da administração municipal.

Talvez esse seja na prática um dos maiores desafios das gestões de esquerda: em muitas cidades hoje governadas pelo PT, é comum observar-se um descompasso ainda grande entre as demandas populares e a capacidade do governo em atendê-las. Ao mesmo tempo, os movimentos populares ficam muitas vezes desorientados, não sabendo mais como reivindicar ações de governos que não raro até incorporam em seus quadros membros dos próprios movimentos. E os governos, por sua vez, parecem as vezes engessados nas dinâmicas restritivas da administração, afogados pelo ritmo alucinante das demandas emergenciais, cerceados pela falta de alternativas financeiras, obcecados pela  chamada  "governabilidade",  e  preocupados  em  manter  uma  imagem  de  "bons moços" junto às classes médias e altas, mais palatável e menos radical do que a mídia e a direita haviam pintado antes de serem eleitos. Embora isso não seja uma regra, a verdade é que não raro as gestões de esquerda parecem se acomodar com um simples rótulo de "governos de esquerda", e com o fato de que o exercício de um governo mais ético e menos comprometido com os interesses dominantes já é suficiente para garantir sua viabilidade política. O PT deve sempre provar que não veio para "radicalizar", e a verdade é que tal preocupação é as vezes incompatível com os desafios que se impõem se a ação governamental visar, em algum momento, enfrentar os reais desequilíbrios sociais das nossas cidades. De fato, a complexidade dos problemas que se colocam certamente irá demandar um engajamento maior, em processos muito mais desgastantes politicamente junto às classes médias e altas, cuja conquista foi tão importante para o PT viabilizar sua chegada ao poder.

Nesse quadro de aberta contradição política entre o discurso e a prática, pelo menos os processo participativos devem poder ser mais efetivos. A gestão participativa não pode se ater apenas ao aumento das audiências públicas ou dos fóruns de discussão com os diferentes setores da sociedade civil.  Hoje a "participação", mesmo em governos de esquerda, se dá com hora marcada, em audiências já pautadas, sobre assuntos pré- estabelecidos. Como bem lembra o urbanista Flávio Villaça, é de se perguntar porque o tema da "participação" geralmente só se aplica a certos assuntos de governo, e não a todos. No Brasil, os fóruns participativos se limitam ao OP, ou a planos diretores que nunca serão efetivados. Porque, por exemplo, não há mecanismos de participação nas decisões  de  investimentos  das  empresas  de  saneamento,  ou  nas  de  metrô?  A participação deveria incorporar de forma estrutural e definitiva a presença decisória da população em todas as estruturas de gestão da máquina administrativa, da escala local à escala  mais  geral.  Nesse  sentido,  o  processo  de  discussão  das  Conferências  das Cidades, implementado este ano pelo Ministério das Cidades, é uma excelente iniciativa, ainda mais considerando tratar-se de um processo que abarca todo o país. Também são fundamentais, por exemplo, os conselhos participativos de habitação e de política urbana, implantados  na  cidade  de  São  Paulo.  Porém,  é  certo  que  o  grau  de  participação, sobretudo com algum poder de decisão, deve ir ainda muito mais longe para começar a ser  eficaz  em  seu  papel  politizador  e  pedagógico,  e  como  um  instrumento  de democratização da gestão pública.

O  Laboratório  de  Habitação  e  Assentamentos  Humanos  da  FAUUSP  experimentou recentemente   uma   alternativa   de   planejamento   urbano   que   pode   ser   uma   boa contribuição nesse sentido, ao propor mecanismos de gestão da cidade descentralizados, liderados pelos governos locais, e gerenciados por uma dinâmica participativa muito mais próxima das demandas locais. Trata-se da elaboração, por encomenda da Secretaria Municipal  de  Habitação  de  São  Paulo  e  da  Cities  Alliance,  de  um  "Plano  de  Ação Habitacional e Urbano para bairros em situação de risco pela exclusão sócio-econômica e a violência". A idéia de um "Plano de Ação", inicialmente proposta pela urbanista Ermínia Maricato, era a de se contrapor justamente aos modelos tradicionais de planejamento urbano acima comentados, com uma proposta de ação local de caráter participativo. A verdade é, como sempre lembra Villaça, que em cerca de 70 anos, apenas um Plano Diretor foi efetivamente aprovado e aplicado na cidade de São Paulo. Para que servem, então, os planos diretores? Será que suas diretrizes sobre os encaminhamentos mais globais do crescimento da cidade já não têm lugar nas Leis Orgânicas, por exemplo? Será que, ao invés deles, planos de ação locais, focalizados nas questões habitacional e urbana, não tem um potencial transformador muito mais significativo?

A experiência, realizada no bairro do Jardim Ângela[13], procurou estabelecer um padrão de ação do poder público que se pautasse pela tentativa de superação dos obstáculos típicos do planejamento tradicional. Assim, alguns princípios norteadores foram estabelecidos, que  podem  ser  replicados  facilmente  em  outras  experiências  do  tipo,  em  diferentes cidades brasileiras. Sem sermos exaustivos, eis alguns deles:

-     O princípio básico de que qualquer plano urbanístico deve ser antes de tudo o  de estabelecer uma presença efetiva do Estado em bairros periféricos  historicamente abandonados pelo poder público;

-     Tal presença deve ser transversal e inter-setorial, envolvendo as diferentes esferas de poder: isso porque a presença do Estado nas periferias se dá de forma fragmentada. Uma escola ou um posto de saúde isolados geram uma expectativa de melhoria que, sozinhos, nunca serão capazes de responder. As periferias precisam urgentemente de um "choque" de políticas inter-setoriais, e nesse sentido qualquer  ação do poder público deve ser tratada como uma política de governo, respaldada pelo(a) prefeito(a) e implicando todas as secretarias.

-     Qualquer  política  para  a  periferia  deve  ser  associada  a  programas  maciços  de provisão habitacional de interesse social nas áreas centrais, promovendo um início de reversão no processo contínuo e ininterrupto de periferização das nossas metrópoles; da  mesma  forma,  nenhum  plano  poderá  ser  realmente  eficaz  se   não  houver concomitantemente uma política macro-econômica não-recessiva,  redistribuidora da renda e geradora de emprego.

-     Diante das dificuldades financeiras, é fundamental que o Plano de Ação se apóie  e potencialize as redes de equipamentos e os programas públicos já existentes, unindo a administração e consolidando a concatenação das políticas setoriais;

-     O Plano de Ação deve ser implementado pelo próprio órgão executor da intervenção

urbana, saindo dos gabinetes especializados no distante "planejamento estratégico", e aproximando-se efetivamente da gestão local. Por isso, o Plano de Ação deve ser também assimilado, implantado e gerenciado pelos órgãos mais locais de governo (sub-prefeituras, etc.). Nesse sentido, pode ser um instrumento eficaz para aproximar, por  cima  das  tradicionais  disputas  políticas  pelo  controle  político  do  território,  as esferas de governo municipais e locais (secretarias e subprefeituras, por exemplo).

-     O  Plano  de  Ação  deve  ser  verdadeiramente  participativo,  incorporando  todos  os agentes sociais locais como protagonistas de sua elaboração, e não apenas  como "observadores   opinativos"   em   fóruns   participativos   com   hora   e   pauta   pré- determinados. A sociedade e a comunidade local não podem ser considerados como simples beneficiários – ou clientes, na terminologia em voga – mas como sujeitos dos processos de decisão e gerenciamento das políticas relativas ao ambiente construído. Nesse sentido, e agora sim, parcerias de co-gestão dos equipamentos  devem ser implementadas com as entidades locais, favorecendo a reconstituição do tecido social e promovendo o desenvolvimento endógeno. A participação deve se  dar  não só na etapa de elaboração, mas também e sobretudo nas fases de implantação e de gestão do plano. Para isso, conselhos de gestão do plano devem ser pensados, para garantir o espaço participativo de forma definitiva e ao máximo aproximada do governo local. Nas etapas iniciais, a pauta de ações do próprio plano deve ser estruturada a partir das demandas discutidas com a população.

-     O Plano e Ação deve ter um papel pedagógico na formação de agentes  políticos locais plenos, assim como deve permitir a estruturação e a coesão de uma rede de profissionais locais diretamente envolvidos no acompanhamento das  condições de vida da população, em todos seus aspectos (habitacional e urbano,  de saúde, de emprego,  etc.),  possibilitando  a  retroalimentação  de  cadastros  humanizados  que possam  ser  utilizados  pelo  poder  público.  Cabe  aqui  destacar  a  atual  rede  dos Programas Saúde Família – PSF implementados pelo PT em vários municípios, e o papel que os agentes comunitários do PSF vêm cumprindo exatamente nesse sentido;

-     O Plano de Ação se sub-divide em pelo menos quatro etapas metodológicas: o pré- diagnóstico, que possibilita uma primeira aproximação junto às comunidades  locais sem gerar demasiada expectativa, o diagnóstico, cujo caráter deve ser  propositivo, para não se cair no erro da academia e do planejamento tradicional  de produzir compêndios técnicos que na prática pouco propõem, um documento de “diretrizes e prioridades” elaborado a partir dos mecanismos participativos, e o plano  propositivo final.

-     A etapa do diagnóstico deve servir para disponibilizar informações, mapas e  dados para as comunidades de regiões geralmente  carentes desse tipo  de  informações sistematizadas, ainda mais espacializadas. Para além do seu uso no próprio Plano de Ação, o diagnóstico pode ter usos intensos e variados por parte das entidades locais da sociedade civil.

Embora  ainda  enfrentem  dificuldades  na  sua  atual  fase  de  implantação,  a  maioria decorrentes   dos   entraves   político-administrativos   e   das   limitações   financeiras, acreditamos que os Planos de Ação, ao se contrapor aos modelos mais tradicionais de planejamento urbano, podem ser o início de uma inflexão do planejamento das cidades para um rumo mais eficaz no seu papel transformador, conseguindo dar conta um pouco melhor da enorme variedade de problemas colocados ao longo deste artigo.

A verdade é que ainda estamos, no Brasil,  longe de poder nos orgulhar de algum avanço significativo nas políticas urbanas que promovam uma real democratização das cidades e o fim da extrema exclusão sócio-espacial. Como se viu neste artigo, os problemas são gigantescos  e  complexos,  pois  a  cidade  é  um  espaço  de  somatização  de  todos  os conflitos sociais. Entretanto, é inegável que talvez estejamos vivendo hoje um dos mais promissores  momentos  para  que  mudanças  mais  significativas  venham  a  ocorrer.  O Ministério das Cidades é um exemplo, assim como a legião de técnicos envolvidos pela causa do direito à cidade justa e democrática, e que trabalham no dia-a-dia da máquina pública das administrações de esquerda espalhadas pelo país, tentando melhorá-la e vencer os constantes obstáculos jurídicos, políticos e burocráticos que nunca param de surgir.  Temos sem dúvida, todos os envolvidos  nessa temática,  a obrigação  de nos implicar, cada um à sua maneira, neste esforço por um planejamento urbano socialmente mais justo e democrático.