O escândalo do metrô só vai aparecer quando morrer alguém?

Escandaloso o que ocorreu ontem no Metrô de São Paulo. Mais escandaloso ainda é a proteção de que beneficia o governo do Estado por parte da mídia, sabe-se lá por quais razões, para acobertar o que vem sendo a pior política pública de transporte que se possa imaginar para qualquer metrópole. E não é de hoje. Vem de, pelo menos 1972.

Li a notícia no UOL mas quando fui ver de novo uma hora depois já não estava mais, tive que garimpá-la no Google. Pelo menos no Estadão e no IG ainda estava (clique aqui e aqui).

Há mais de um ano, passando pela junção entre as linhas verde e amarela do metrô as seis da tarde, me lembro de ficar assustado e comentar com amigos: aquilo era uma máquina de tragédias pronta para explodir. Qualquer um que passasse tinha a mesma sensação, que teve aliás o Sakamoto (leia aqui): qualquer coisa que viesse a causar pânico ali iria resultar em uma tragédia, pisoteamentos, mortes. No fundo, e apesar dos feridos, vítimas do descaso público, ontem demos sorte. Não morreu ninguém.

Essa é mais uma consequência de uma terceirização até hoje pouco investigada para a construção da Linha Amarela, que se deu pelo sistema de "menor preço" e resultou em falcatruas que levaram à tragédia do buraco, hoje caída no esquecimento sem que tenha sequer havido todos os ressarcimentos e investigações. O resultado é tão ruim que arquitetos que passam pelas estações ficam estarrecidos que algumas soluções tenham sido permitidas, como é o caso da junção em que houve o acidente. Um dos maiores especialistas brasileiros em projetos de transporte público me disse que ali a única solução seria destruir toda a ligação e refazê-la, duas vezes mais larga.

Isso para não falar na baldeação da Sé, que nos horários de pico só não tem tragédias porque talvez Deus realmente seja brasileiro. 

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Vejam a foto ao lado. É bom andar precavido. Com esse nível de saturação, qualquer furto, qualquer briguinha ou desentendimento pode causar um fenômeno de pânico e um movimento de massa irreversível e perigosíssimo.

O Metrô de São Paulo é um dos mais carregados do mundo.  Como mostra o urbanista Eduardo Nobre em dois excelentes artigos (clique aqui e aqui), São Paulo transporta 3,3 milhões de passageiros/dia em sua rede de pouco mais de 60 km, ao passo que o  metrô da Cidade do México leva 3,9 milhões de pessoas por dia, mas em 200 km de trilhos. Ou seja, são 19.374 passageiros por km lá, contra....quase 54 mil passageiros por km aqui!  Isso é culpa de uma cidade que cresce muito? Não, é culpa de políticas de transportes elitistas e quase criminosas (aqui link para outro bom artigo, de Zandonade e Morett, e aqui para outro de Raquel Rolniki).

São Paulo iniciou seu metrô somente em 1968 (já em 1928 havia recusado oferta da Light em fazer metrô no lugar dos bondes), e desde então, viu sua rede crescer a miseráveis 1,6 km por ano. Uma evidência de que todos os investimentos em mobilidade eram voltados para minhocões, marginais e outras vias expressas, em uma clara e elitista opção pelo automóvel, usado pelos mais ricos. Eduardo Nobre mostra que se fossem aplicados em obras de transporte público os cerca de 40 bilhões investidos em obras viárias entre 1975 e 2000, poderiam ser feitos mais de 80 km de linhas de metrô.

A Cidade do México começou na mesma época a sua rede de metrô, mas hoje ela é mais de três vezes maior do que a daqui. Ainda assim, é insuficiente dada a área daquela cidade (equivalente à da nossa região metropolitana). Mas mesmo assim, já faz toda a diferença, como já comentei em outra postagem (clique aqui), e as possibilidades de deslocamento na capital mexicana, entre o metrô e dois corredores estruturais de ônibus (com ultrapassagem) que cortam toda a cidade, são claramente maiores do que aqui.

Não é que no México a indústria automobilística não tenha sido, como aqui, a locomotiva da industrialização. Foi importantíssima, e o México vive um colapso de trânsito igualzinho o nosso. Mas ao longo da história, o perfil menos elitista (ou as vezes mais populista, talvez) dos governos de lá fez com que, minimamente, se desse atenção também ao crescimento das linhas de metrô.

Aqui não. É claro que a indústria automobilística teve grande peso, e até hoje vivemos a contradição de impulsionar a economia nacional à base de reduções de IPI. Com isso, são quase mil carros novos que entram por dia na frota paulistana. Ao longo do século XX, como mostra novamente Eduardo Nobre, o espaço do carro foi crescendo, em detrimento dos transportes públicos, fossem eles bondes, troleibus, ônibus ou metrô. Estabeleceu-se uma lógica elitista e concentradora da renda, assim como era o modelo econômico, já que quem usa carro era e ainda é a minoria. Hoje, pelos dados do próprio Metrô, só 30% das viagens diárias na cidade são feitas de carro, as outras 70% são a pé ou por transporte público.

Mas os investimentos sempre foram faraonicamente desequilibrados a favor do automóvel: do minhocão do Maluf às vias expressas da marginal feitas no ano passado, passando por pontes e túneis em que os ônibus sequer são autorizados a passar. Imaginem o custo de todo o aparato existente para que os carros possam circular: CET, faróis, operações tapa-buraco, novos viadutos, etc, etc.

Mas o "erro"  de não dar bola à maioria, ignorá-la solenemente e promover apenas políticas para os ainda poucos carros da cidade (poucos em relação ao colapso de hoje), tornou-se realmente grave nos anos 80 e 90, quando ficava evidente que o crescimento da cidade demandaria, a médio prazo, um planejamento mais consistente do sistema de transportes. Há planos desde a década de 60 para a expansão da rede de metrô, mas nunca foram cumpridos, como o PUB (Plano Urbanístico Básico) de 1968, que previa 450 km de linhas de metrô, ou como o PITU 2020 (Plano Integrado de Transportes Urbanos), elaborado em 1997, mas que foi acumulando atrasos estratosféricos em relação às metas previstas. O metrô ficou para trás, enquanto que as obras viárias se concentravam também no setor sudoeste, de maior renda.

A explicação para isso está nas raízes mais profundas do Estado patrimonialista, que confunde o público com o privado e promove especificamente os interesses dominantes, e não os de toda a sociedade. Está  na permanência, há décadas, de um Estado elitista na condução das políticas de transporte. Um verdadeiro descaso, que durou não alguns anos, mas décadas.

Um dia, a panela ia estourar. Não é possível mais para a cidade sobreviver a tal colapso de mobilidade (ver texto aqui). Tudo bem que a prefeitura queira colocar com urgência corredores e faixas de ônibus, e estruturar o crescimento da cidade em torno deles. É o jeito. Mas serve somente para correr atrás do prejuízo....e nunca alcançá-lo. Por mais que se cubra a cidade de corredores, o que seria fantástico, ainda assim não se resolverá totalmente a crise de mobilidade da cidade. Mas melhorará muito. A carga de passageiros-hora do metrô chega a ser 3 vezes maior que a de ônibus em corredores. O metrô não foi feito, e agora se vê o custo e os impactos que ele gera na sua construção: buracos, casas rachadas, e uma classe média em fúria por causa do aumento do trânsito.

Aliás, em geral os governantes não gostam de fazer metrô porque justamente ele leva mais tempo para ser feito do que dura uma gestão. Ao fim de seus governos, arcam com os custos dos impactos das obras sem lucrar eleitoralmente com um metrô pronto, que fica para o sucessor. Por isso preferem anéis viários e vias expressas novas, mais rápidas de fazer e de dar retorno político. 

Mas o que pesa contra o Governo de São Paulo é justamente isso: ele não tem essa desculpa. Com duas décadas e tanto no poder, houve tempo, e de sobra. A comparação entre a pressa em fazer o rodoanel, passando sem cerimônia sobre áreas de proteção ambiental e a lentidão do metrô é impressionante. Mas nos últimos anos, perceberam o erro. Aumentaram o ritmo de crescimento do metrô para cerca de 6,5 km ao ano. Mas, como diz Nobre, "mantendo-se o ritmo atual, serão necessários aproximadamente 20 anos para alcançarmos a quilometragem da cidade do México". Isso dá uma ideia do quanto o abandono do metrô foi um descalabro e uma bomba a retardamento.

Assim, quando surgem as denúncias de corrupção justamente no metrô, e que se vê que com o valor desviado poderiam ser feitos muitos quilômetros de linha, não consigo entender como, em épocas de histeria por tantos escândalos, este, que está no cerne do colapso urbano de São Paulo, é tão ignorado.  A começar que as denúncias contra a Alstom vêm desde 2009, se não me engano. Mas estranhamente, sumiram do noticiário. Voltam agora à tona, implicando outra empresa, a Siemens, mas somente porque os Suíços resolveram investigar. Senão, ficaríamos anos sem saber. Se causaram algum impacto quando noticiadas, há algumas semanas, estranhamente já sumiram das manchetes. Não se fala mais nisso. Temos uma cidade que vive há 30 anos sem política de metrô, descobre-se que além do mais este era meio de corrupção pesada, e não se fala mais nisso, Pior, o governador tem o topete de entrar na justiça contra a empresa, como se fosse aceitável um governador dizer, com semblante indignado, que não sabia de nada e se sentiu lesado. Faz-nos de trouxas, e ninguém fala nada.

Pior é o monotrilho da Avenida Roberto Marinho, um verdadeiro desastre visual na cidade,m uma barreira que se cria que produzirá um minhocão ferroviário, tão feio quanto o do "fura-fila" (de nome original infeliz) ao longo da Av. do Estado. Qualquer arquiteto ou engenheiro que passe pelas obras fica espantado e intrigado com o tamanho daqueles pilares de concreto, claramente superestimados. Não seria o caso do Ministério Público lançar uma investigação sobre aquele projeto e seus cálculos estruturais, para verificar se não há por lá indícios fortes de superfaturamento?

Por falar em monotrilho, as soluções que se adotam atualmente são cada vez mais desastrosas. Opta-se por fazer a linha amarela, que corta todos os bairros nobres já tão privilegiados, em vez de fazer a extensão muito mais urgente da linha Lilás, que termina de repente no Largo Treze, em direção ao  centro da cidade. Mesmo nas obras do metrô se privilegiam os bairros nobres. Ainda assim, com "erros" crassos e injustificáveis, não fosse pela clara opção de elitização que escondem: como por exemplo fazer uma linha de metrô que não para na entrada do Cidade Universitária, para onde vão dezenas de milhares de pessoas por dia, mas passa a uns 2 km de lá, gerando a necessidade de um serviço de baldeação por ônibus que já nasceu desastroso, ineficiente, e gerador de trânsito.  O trem que supostamente permitirá enfim fazer a viagem até o Aeroporto Internacional de Cumbica (um dos maiores vexames que São Paulo apresenta é a acessibilidade ao seu aeroporto) terá seu acessoa  partir do metrô tão, mas tão complicado, com tantas baldeações, que se prevê uma hora e meia em horário calmo para chegar até lá!

Bem que o Passe Livre tentou fazer uma manifestação contra os escândalos de corrupção da Siemens e da Alstom, mas essa não pegou. Os movimentos cívicos e anônimos não acharam por bem aderir, desta vez. 

O problema é que chegou-se em um ponto que não dá mais para disfarçar. O mais grave, porém, é que quando a panela de pressão estourar, será em alguma tragédia como a que quase aconteceu ontem. É esperar e rezar para que Deus brasileiro não permita que alguma coisa saia da ordem, em algumas das muitas horas de rush em que os paulistanos são espremidos como sardinhas em um metrô que há tempos também colapsou.