Plano Diretor (parte 2): radicalizar o acesso à terra urbana para todos; mas, o que foi esse tal decreto impedindo habitação social em áreas nobres?

Na postagem anterior, comentei sobre o perigo do plano diretor que está sendo elaborado ser novamente um compêndio cheio de diretrizes que nunca serão serão aplicadas.  Recentemente, pude conhecer a forma com que a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano vem trabalhando nessa revisão, e tenho certeza que ela o faz com extrema seriedade.

A secretaria tem bom entendimento da necessidade em se propor um plano mais simples do que o anterior, mais objetivo e radical quanto à suas diretrizes. Vem promovendo um processo participativo interessante e qualificado, a partir de grupos de trabalho setoriais, que deram continuidade às grandes plenárias temáticas iniciais (de efeito bastante inócuo, pois é impossível fazer plenárias únicas para uma população de dez milhões). Dentre os assuntos que estão abordando, há coisas importantes como a eliminação de alguns vícios legais que favorecem uma má implantação urbana, como a Lei de Adiron, as outorgas e os estoques edificáveis, uma retomada mais incisiva dos instrumentos do Estatuto da Cidade, a estruturação de uma politica de mobilidade que priorize o transporte público, ou ainda a reflexão das dinâmicas econômicas a incentivar para quebrar a extrema concentração de atividades no setor sudoeste. 

Dentre todas essas boas iniciativas, há uma, porém, que pode ser realmente transformadora. A de criar uma lei, inspirada na francesa Lei da Solidariedade e Renovação Urbana  (SRU), capaz de alterar de maneira radical o acesso à terra pelos mais pobres em bairros da cidade formal de mais alta renda. Pois sabemos que, dentre todas as propostas que um Plano Diretor deve trazer, a mais importante, no nosso contexto de extrema segregação, é a de dar lugar para os pobres na cidade, e quebrar a lógica perversa que os relega, há décadas, ao que a urbanista Ermínia Maricato chama de "exílio da periferia". 

A lei francesa tem um princípio simples: naquele país em que o déficit total de moradia não chega a 400 mil (aqui são 6 milhões) , a lei SRU estabelece que todo município francês deve oferecer um mínimo de 20% do total das unidades habitacionais para a população de baixa renda, qualquer que seja a modalidade de acesso à moradia (aluguel social público ou privado, compra, etc.). Quem não cumprir, paga multa ao ministério da habitação, que a usa para ele mesmo produzir habitações sociais no município. Não entrarei aqui na (longa) discussão se a lei francesa funciona bem ou mal, se foi adequadamente aplicada ou não. Lá também há inúmeras dificuldades, pois a pouca aceitação dos mais ricos em dividir democraticamente o espaço urbano com os mais pobres parece ser um problema universal ao capitalismo, e não só brasileiro.

Aqui, uma "Lei da solidariedade urbana paulistana", como se aventa chamar, pode ser uma inovação exemplar para todo o país. No meu entender, trataria-se mais ou menos do seguinte. 

É aceito hoje por todo cidadão que grandes projetos, como shoppings, complexos de escritórios ou grandes condomínios residenciais têm grande impacto na cidade. Entretanto, quando se fala em impacto, pensa-se imediatamente no automóvel. Por isso, há anos, a prefeitura exige obras viárias toda vez que um desses empreendimentos é lançado. Nesses casos, a CET torna-se a toda poderosa instituição a dar os parâmetros necessários: mais alças de acesso, alargamento das vias, novos faróis, etc. A verdade é que trata-se de remendos, pois com o colapso do modelo automobilístico e com a liberalidade com que se autorizaram, nos últimos anos, novos shoppings e grandes empreendimentos na cidade, essas medidas na verdade de nada adiantam e a cidade torna-se cada vez mais caótica. Porém, como aconteceu no novo Shopping JK, após  algumas semanas de negociações, umas vias e uns acessos aqui e ali parecem satisfazer todo mundo e toca-se o barco pra frente (para o regojizo dos empreendedores).

Pois bem, a lógica do automóvel e a cegueira proposital com a questão da segregação são tão preponderantes que ninguém, até hoje, levantou um outro tipo de "impacto" urbano, bem mais importante de ser considerado:  quando se constrói um shopping ou um grande empreendimento residencial, gera-se automaticamente um novo e enorme fluxo, não só de carros, mas sobretudo de pessoas. Se os clientes de shopping ou os donos de apartamentos de luxo usam carro, é uma coisa. Para isso, constroem-se gigantescas garagens ou oferecem-se as vezes até 12 vagas por apartamento. Mas, e os outros? Só porque não usam carro não são considerados? Um empreendimento de grande porte movimentará uma legião de pessoas, que lá chegam por transporte público, e que fazem esses edifícios funcionarem: são empregados domésticos, faxineiros,  lojistas, vendedores, seguranças, funcionários administrativos, jardineiros, e assim por diante.

Imagine-se, por exemplo, um empreendimento de moradia para a alta renda (como aquele na barra funda no antigo terreno da Telesp, por exemplo), desses que o mercado adora, com muros e guaritas e milhares de vagas na garagem, com 6 torres de 30 andares, cada uma com, digamos, 2 apartamentos por andar. Temos então 360 unidades. Como no Brasil a classe média alta tem sempre ao menos um empregado em casa, são 360 pessoas trabalhando nesse conjunto, sem contar os que têm mais de um empregado e todos os funcionários do condomínio. Digamos que somem, ao todo, umas 400 a 450 pessoas. Todas elas se deslocam diariamente até o local, geralmente perdendo meio dia de trabalho apertados em ônibus e trens ineficientes e superlotados. Acentuam o desequilibrado movimento pendular da cidade, entre as periferias e os bairros nobres e acentuam a deseconomia urbana. Agravam o estresse e os problemas de saúde de uma população forçada a enfrentar verdadeiras viagens diárias entre casa e trabalho.

A pergunta é : por que, na nossa sociedade, ignora-se tão solenemente esse fato e aceita-se que isso seja uma regra, que as pessoas pobres trabalhando em condomínios e shoppings de luxo devam obrigatoriamente morar a quilômetros de distância de seu trabalho? Por que não é possível prever oferta de moradia para as pessoas perto de seu trabalho? Pessoas das classes mais altas conseguem ter liberdade financeira para alugar ou comprar sua moradia perto de seu trabalho, ou da escola das crianças, ou do clube. À medida que vai-se descendo na escala social, isso vai ficando mais difícil. Hoje, o colapso da mobilidade e a bolha especulativa dos preços imobiliários são tais que nem mesmo a classe média motorizada, antes beneficiada, escapa dessa lógica perversa, e se vê parada no trânsito ao atravessar a cidade para ir ao emprego, à faculdade.

A resposta é simples: porque, em toda nossa história, nunca se promoveu uma urbanização que fosse oferecendo alternativas de moradias para todas as faixas sociais e em toda a cidade, de forma minimamente homogênea (ver sobre isso artigo que escrevi sobre a Cidade do México, clicando aqui). Aqui, a urbanização segue a logica do apartheid, da segmentação e da segregação, construindo-se bairros-fortaleza exclusivos para os mais ricos, bairros só para a classe média, bairros distantes para os mais pobres. Uma lógica além de tudo burra, pois ela mata a cidade. É só verificar que os bairros mais simpáticos de São Paulo são aqueles que ainda conseguem, minimamente, oferecer grande variedade de usos e de faixas de renda. A democracia social é o alimento de uma cidade que funcione.

A Lei da Solidariedade Urbana

A ideia dessa lei visa justamente alterar essa lógica. A ideia é simples, podendo passar por ajustes. Para todo empreendimento, seja comercial ou residencial, de grandes proporções, que deve ser medido tanto pela metragem quadrado construída quanto pelo terreno da gleba utilizada (por exemplo, em terrenos de mais de 5 mil m² e/ou empreendimentos de mais de 10 mil m² construídos), uma parcela de x% da área deve ser doada à prefeitura para a obrigatória construção de habitações de interesse social, com o objetivo de mitigar o impacto nos fluxos de deslocamento populacional que o empreendimento gera e oferecer alternativas de moradia próximas ao trabalho para a população prestadora de serviços que o empreendimento irá atrair.

Não se trata de obrigar os empreendedores a construir eles mesmos. Para isso, há a COHAB, há financiamentos municipais, estaduais e federais, como o MInha Casa MInha Vida. Trata-se de enfrentar a questão central, a da disponibilidade de terra para fins de moradia social nos bairros mais ricos.  Trata-se de mudar a lógica perversa da urbanização exclusivista e segregadora.

Uma ideia simples, que a prefeitura deveria encampar, tornando-se a referência para o Brasil que São Paulo merece ser. 

Agora, enquanto se discute o Plano Diretor e possibilidades como essa, coisas estranhas acontecem, e arriscam por a perder toda a esperança que se deposita nessa gestão: no dia 5 de julho, o prefeito publicou um decreto que, sob a suposta intenção de organizar e facilitar a produção de habitação social na cidade, proíbe que sejam feitos conjuntos de habitação social nos bairros exclusivamente residenciais, ou seja, os mais nobres da cidade! A urbanista Raquel Rolnik comentou sobre isso no seu blog (leia aqui), com razão: em um momento de esforço para a realização de um Plano Diretor inovador, em que se pensam instrumentos de democratização, um decreto como esse, típico das lógicas mais perversas de segregação dos mais pobres, pode colocar tudo a perder. Ainda há tempo para modificá-lo.