20 mil habitações no centro expandido: É possível? Parte 2

Na postagem anterior, escrevi sobre o novo plano anunciado pela Prefeitura e o Governo do Estado para a questão habitacional na área central de São Paulo. Comentei que é louvável a decisão de promover a ocupação dos prédios abandonados, que não cumprem sua função social, e vitalizar a região trazendo moradores e diversificando os usos. Porém, apontei que tal política só será realmente transformadora se, talvez pela primeira vez no país, conseguir efetivamente alavancar uma ocupação democrática, não apenas privilegiando os mais ricos, mas dando espaço também - e sobretudo - para os mais pobres, que dão hoje ao centro toda sua vida.

Também ponderei que era uma incógnita o uso de uma Parceria Público Privada (PPP) para alavancar essa política, merecendo maior reflexão, já que no Brasil, tradicionalmente, as PPPs acabam privilegiando interesses privados muito mais do que o público. São esses aspectos que tentarei detalhar nesta segunda postagem sobre o assunto.

A "arquitetura" do plano anunciado ainda é uma incógnita  Falaram-se as grandes linhas, e as informações que tenho, para além delas, são as seguintes: ​na PPP, a iniciativa privada interessada entraria com a compra do edifício. Em troca, reformaria - provavelmente com benefícios financeiros e fiscais - e exploraria o comércio nos térreos desses prédios. Uma iniciativa interessante pois valoriza o uso comercial que já existe na região, e que demanda por espaços novos e mais organizados, mas sobretudo porque institui a possibilidade de termos financiamento habitacional para edifícios de uso misto, o que evita a formação dos chamados "bairros dormitórios". A prefeitura e o governo do Estado entrariam, por sua vez, com subsídios do Programa Minha Casa, Minha Vida, da União, e provavelmente recursos próprios, para viabilizar, na parte superior desses edifícios, a construção de habitações, parte delas de interesse social. 

Vale festejar o fato de que, enfim, algum município resolveu usar os recursos importantes do PMCMV para a reabilitação de moradias na área central. Isso está previsto no programa federal, mas até hoje praticamente não foi feito, o que surpreende quando se sabe que o número de unidades habitacionais vazias nos centros das cidades brasileiras quase que equivale ao nosso déficit habitacional.​

Entretanto, é na questão do "para quem" se destinarão essas moradias que estão os detalhes que devem ser melhor definidos. Segundo o divulgado (clique aqui), das pouco mais de 20 mil unidades habitacionais previstas, 12.500 iriam para a população com renda até 5 salários mínimos estaduais (R$ 755), ou seja R$ 3.775. As outras quase 8 mil unidades seriam para uma faixa mais alta, de quem ganha entre R$ 3.775 e R$ 10.848. E somente duas mil unidades seriam reservadas para associações de moradia, ou seja, para a população realmente mais pobre, embora seja ela  a única que até hoje levanta a bandeira da moradia no centro, fazendo corajosas (e violentamente combatidas) ocupações de prédios que não cumprem sua função social.

Não quero aqui defender que se faça no centro uma ocupação exclusiva para a população de baixa renda, assim como não cabia o projeto da gestão anterior de elitizar a região ao máximo. É importante frisar que a chave para a construção de uma cidade dinâmica, democrática e saudável está justamente na sua diversidade, tanto de usos quanto de renda de seus moradores. O projeto proposto, nesse sentido, oferece essa diversidade. Porém, um olhar atento mostra que a equação está desequilibrada: podemos estar frente a uma grande intervenção pública que deixará mais uma vez de lado a população realmente mais pobre, aquela que mais necessita de políticas habitacionais.

Geralmente, quando se propõe uma ação associada ao setor privado que ​visa uma faixa de renda "até" algum valor salarial, a opção do mercado é privilegiar a ponta de cima dessa faixa, onde o retorno financeiro é mais fácil e seguro. Assim, é de se esperar que das 12.500 habitações destinadas à pessoas com salários "até" R$ 3.750,00, grande parte delas, talvez nove ou dez mil, beneficiem pessoas acima de 4 salários, ou seja com renda acima de três mil Reais. 

Sobrariam umas 2 ou 3 mil unidades repartidas para uma extensa faixa de população ganhando entre 0 e 3 mil Reais, o que é uma grande diferença.​ Na soma final, ​teríamos  as 2 mil unidades oficialmente reservadas para os movimentos de moradia, e mais alguns restos da faixa "até" 5 salários-mínimos, beneficiando de fato a população muito pobre. Sendo otimistas, digamos que nesse plano, das 20 mil unidades anunciadas, algo como 3 mil unidades, ou 15%, talvez chegassem à população de fato MUITO pobre. Três mil unidades correspondem a uma população de cerca de 10 mil pessoas.

Ocorre que a população pobre que não tem moradia adequada na cidade de São Paulo beira os 4 milhões. Mesmo as 50 mil unidades de habitação social - um recorde, se ocorrer - prometidas na campanha do prefeito, representariam uma solução para apenas 175 mil pessoas, muito aquém do necessário.

Temos de ser claros: a situação da maior e mais rica cidade do país é escandalosa. Com tanta gente sem ter onde morar, a cidade irá implodir socialmente. Todas as políticas urbanas têm que colocar essa questão como primeira prioridade. Porém, não há mais muita terra livre para fazer moradias. Uma das soluções é a urbanização de favelas. Mas a outra,  a mais radicalmente transformadora, é a de destinar um número significativo de moradias no centro para toda essa gente. Como disse no post anterior, há muita diferença entre quem ganha 150 Reais por mês e ocupa um prédio vazio no centro perto de seu trabalho precário, e quem ganha R$ 3.775.

Uma política realmente transformadora e claramente engajada na democratização da cidade deveria priorizar, com recursos subsidiados do MCMV, essa faixa de renda muito baixa. De quem ganhe até um mísero salário mínimo. Seria realmente espetacular, inovador, se fossem pelo menos 10 ou 15 mil moradias, e não 3 mil, só para essa faixa de renda, ou no máximo para até 3 salários mínimos. Se a PPP conseguir que o mercado privado compre os prédios para explorar o comércio no térreo, tanto melhor. Os andares de cima seriam  entretanto, destinados às faixas de renda mais baixa. Se não conseguir, o que é mais provável (pois o mercado reluta quando se trata de misturar ricos e pobres), talvez nem seja necessária a PPP: a prefeitura poderia desapropriar para fins sociais os mais de 80 prédios vazios e ilegais - pois infringem o Estatuto da Cidade - que a COHAB já tem selecionados, com recursos do MCMV e do Fundo Municipal de Moradia, e reabilitá-los.

A PPP serviria, ainda assim, para outras tantas unidades, quem sabe outras 10 ou 15 mil, estas para faixas de renda acima dos 3 mil reais, utilizando-se de recursos onerosos do MCMV (e não subsidiados)​ e do dinheiro privado para alavancar a compra dos prédios e o uso comercial do térreo, como previsto.

Aí sim poderemos festejar uma ação realmente corajosa politicamente e transformadora, pois pela primeira vez se estaria dando espaço, na proporção adequada, à moradia para os que dela mais precisam.​

​Mas, qualquer que seja a equação final, uma série de questionamentos ainda restam indefinidos. Pontos que também devem fazer parte da montagem dessa operação. A pesquisadora Marcia Hirata, do LabHab, apontou alguns deles:

- O modelo de empreendimento das incorporadoras em São Paulo (e no Brasil) é arrasa-quarteirão. No Glicério, por exemplo, mas em outros bairros do centro expandido, isso significa matar parte da história da cidade, sem qualquer critério de preservação urbanística, exceto para os poucos imóveis já tombados.

. Um projeto como esse provoca, desde o momento de seu anúncio, uma rápida supervalorização dos imóveis, na expectativa da sua compra. Isso pode levar à drenagem dos recursos destinados à reabilitação do imóvel para pagar seu preço de venda, elitizando de vez a proposta. O fato da compra ser deixada por conta do setor privado, pela PPP, pode fazer com que os preços se auto-regulem, já que o mercado não aceitará pagar muito acima do preço atual, já bastante valorizado? Ou poderá, simplesmente, afastar o mercado, congelando assim o projeto? O que, então, está sendo pensado para segurar a possível valorização?

- O alvo do mercado imobiliário são os antigos terrenos industriais, por exemplo em bairros como o Brás, grande parte deles contaminados, e impróprios para uso habitacional. Haverá rigor na descontaminação? Hoje é bem questionável o método de avaliação do nível de contaminação e de controle da descontaminação;

- Por fim, sempre é bom lembrar: planejamento urbano e habitacional se faz com participação. Da população moradora, dos movimentos sociais, dos comerciantes locais. Na chamada de projetos para esta PPP, estão previstos processos participativos?​

​A ideia de produzir 20 mil unidades habitacionais no centro expandido é, como já disse, louvável. Pode ser a marca desta gestão. O que se espera é que seja também, a marca de um processo pioneiro de democratização urbana, gostem ou não as elites. Resta saber se a PPP permitirá isso.

Sinceramente, torço para que sim.​